6.2.12

O romantismo aventureiro

Procurava-se procurando Deus através da Igreja Católica. E escreveu sobre essa sua peregrinação interior andorinhando pela sua biografia. É um livro sincero porque mostra despojamento. E dúvida. E mostra-se nele tal como se sentia, escrevendo-o angustiado pelo tempo decorrido. E citou um verso, de um magnífico poeta. «Triste é saber no Outono que era o Verão a única estação. É isso, Ruy Belo. Triste é ter quarenta e três anos e só agora pressentir o que são opções que vão efectivamente ao fundo das coisas e que, até aqui, andámos na contra-corrente do mundo, autodidactas da própria personalidade. Agora, prisioneiros de coisas importantes, fiquei indisponível para coisas importantes».
Assim António Alçada Baptista, o «paternalista diálectico», como o apodou o João Cutileiro ou o «Pascal Petit», como lhe chamava o José Cutileiro, encontrou-se em convergência com as suas raízes. O personalismo cristão que se lhe resolveu na idade madura floresce sobre esta terra húmida e grata. E vê: «a crise da vida portuguesa iniciou-se, a meu ver, quando a civilização a pouco e pouco deixou de ser conduzida pelas linhas da intuição, do lirismo espontâneo, do romantismo aventureiro, e passou para a via da reflexão, da razão e do conhecimento».
Acabei ontem o primeiro volume. Andorinhando.

17.1.12

Os Instantes do Eterno

Os passos encaminharam-me, inexoráveis, para o livro, obra de uma biografia interior, densa, como o traçado de uma via de caminhada espiritual, assinalados os marcos miliários do seu encontro com a transcendência. 
Obra oriunda da clausura dos silêncios, na apercepção do contemplativo, fruto de «leituras de mestres da vida, mais do que mestres de pensamento».
Dalila Lello Pereira da Costa é a expressão da invulgaridade, iluminada pelo arder místico do Mistério, submissa aos dogmas como «fixações necessárias dum conhecimento revelado», esforçando-se pela constante racionalização da noética e sua simbólica.
Nos labirintos do seu modo de expressar o Verbo e com ele a Graça, fiel no seu apagamento do "eu", inoportuno e invasor, não tem paralelismo, anulando o que diferencia. 
O livro é a narrativa da trina visitação, os estados extáticos que haviam sido tema de um dos seus primeiros livros, editado pela personalista Esprit, o aprofundamento do esotérico, porta aberta pela qual penetrara, nas primícias, na personalidade ímpar e una de Fernando Pessoa; e um amor à Pátria, permanente na viagem de argonauta lusíada, Pátria que tendo-se dado inteira à Humanidade vive agora «um sentido sagrado de oblação a sua final agonia».
Foi publicado em 1999. Como quase todas as suas obras - e creio que poucas me faltam - quase impossível de se encontrar.
Profética, poética, absolutamente fora dos cânones. Exauriu-se para ser a voz. Não ousa revelar, dizendo-o.

30.12.11

Manuel Antunes, S. J.

Padre Jesuíta a ensinar numa Universidade laica e republicana, a de Letras de Lisboa, soube-se impor pela sua personalidade generosa, humilde e tolerante, pela sabedoria que oferecia como pedagogia, pela contenção da expressão. Amigo íntimo de Lindley Cintra, de Jorge de Sena, de Vitorino Nemésio, tão diferentes e tão idênticos na sua intrínseca humanidade.
Tenho dele a obra completa, editada pela Fundação Gulbenkian, que adquiri com a ânsia de a ler na íntegra um dia, e o número comemorativo da Brotéria de que foi director. Tivesse tempo começava hoje.
Faltava-me conhecê-lo. Sucedeu hoje, através do livro que José Eduardo Franco coordenou reunindo testemunhos de quantos o conheceram.
Talvez o título Um Pedagogo da Democracia seja redutor, porque a vastidão da sua pessoa sobeja amplamente a essa vertente para a qual a política é convocada.
Tenho vindo a ler os depoimentos que consubstanciam a obra sem continuidade, como faço frequentemente, ao sabor do acaso. Terminei agora o de Manuel Ferreira Patrício, que foi Reitor da Universidade de Évora. Doutorou-se com uma tese sobre Leonardo Coimbra. Manuel Antunes orientou-o até mais não poder. 
Amigo e vizinho de António Telmo, pela mão deste conheceu Álvaro Ribeiro. Iniciou-se assim nas filosofias nacionais. O tema de investigação surgiu-lhe como experiência de vida. Num dos encontros para a preparação do trabalho, Manuel Antunes sugeriu-lhe que «a dimensão do Amor era fundamental na obra e no pensamento de Leonardo», o autor de A Alegria, A Dor e a Graça. Porque o mistério do ser só se entende com o coração, em intimidade com o existente, abarcando-o como coisa nossa. Torna-se o amador na coisa amada, a unidade do sinto logo existe, existo enquanto sinto.

19.12.11

A vigília permanente

Confessa-a no terceiro volume da segunda série da sua Conta Corrente, quando, enfim, a França o galardoou e o pesar da idade o torna prisioneiro da ânsia de prémios, recebido o da Europália, frustrado o Nobel, a ascendência que a França teve no seu pensamento.
Pressente-se isso no pendor que a sua obra de ficção teve para a tragédia absurda da condição humana, e por essa via, a absorção do que se convencionou designar de existencialismo, mais sartreano no seu caso do que camusiano. 
Só que não consegue desligar-se do húmus pátrio e com isso o cosmopolitismo dói-lhe, enquanto blague e pose, como uma superficialidade de salão e alerta-o como arquitectura concentracionária e enquanto segregação racionalista rasgando tudo aquilo de que o seu ser está embebido, a sensação nostálgica colhida na neblina das serranias da sua Guarda, a indiferença contemplativa ante a aridez sufocante de Évora cidade, a rotina liceal conformada do seu Camões, a vigília permanente, sísifica da sua escrita.
Nisso, e cito tudo isto de cor por preguiça de ir buscar livros que cite, Vergílio Ferreira é um filósofo da portugalidade, porque tem da Pátria a terra no pó da sua existência discreta, e a ausência de abstracções como personagens ou de generalizações como ideias. Tudo nele é o que é e assim é que é, numa helicoidal de angústia e assim sucessivamente.

17.12.11

O destino rasga e cose

O meu envolvimento com a chamada «filosofia portuguesa» [essa corrente do pensamento que muito do academismo ainda hoje desconsidera e apouca] deu-se através do António Quadros, primeiro pela síntese que ele fez dos vários afluentes desse grande delta do sentir filosoficamente a essência saudosa do ser, depois pela cruzada própria que travou até ao fim pelo espírito de 57]. Simultaneamente chegou-me o Jesué Pinharanda Gomes, a sua obra própria e a intensa e humilde actividade divulgadora e formativa. A partir daqui fui-me espraiando, como quem dá braçadas contra a corrente do "racionalismo" contemporâneo e seus demónios materialistas. 
Olhando para o que reuni como biblioteca e para o que li, o défice é imenso e profunda a minha vergonha ante a indesmentível iliteracia. Faltam-me números da Nova Águia, já não consegui reunir todos os que Leonardo Coimbra escreveu - nem acabei de ler o seu A Rússia de Hoje, o Homem de Sempre - do Sampaio Bruno está quase tudo por ler, do Pascoaes, sim, li e reli A Arte de Ser Português, mas ainda hoje sinto o incompleto da alma imperfeita ao tomar nas mãos tudo quanto escreveu a Dalila Lello Pereira da Costa. Vadiei com o Agostinho da Silva, tertuliei com os escritos do Orlando Vitorino, mas nunca li uma linha que fosse do Afonso Botelho, fui relapso aluno dos Estudos Gerais do Álvaro Ribeiro e da sua obra.
Tantos houve e há, os ligados ao Direito como o António Braz Teixeira, meu colega docente nos idos anos pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica [ele a perder-se pelo Direito Fiscal, imaginem, eu pelo Processo Penal, acreditem!], o António Telmo, e os que não refiro por aquele sem-razão de não haver queixa nem amor mas esquecimento de escrita improvisada, que simplesmente folheei.
Esta manhã acordei com ganas de retomar caminho. Vim a este blog olhar para a lateral onde está o arquivo e ver quanto abandonei, para rever o que foi, afinal, a reconstrução da minha essência. Em tempos voltei à silva florescente de blogs que surgiram sobre o esse Graal que é a ideia íntima de Portugal, para sentir o pudor pelo meu mundo por fazer.
Há muito que deixei de acreditar nas organizações humanas como forma de se alcançar a essência do oculto. Foi mundo que tanto se profanizou. Os joelhos descarnados no gélido chão que vi numa Igreja Ortodoxa russa, as lágrimas a escorrerem por uma face engelhada, foram mais símbolo do que rituais mecânicos de profissões de fé já sem esperança de gente sem caridade com que diariamente nos debatemos, nomeadamente das vezes em que os corpos de amigos são encomendados à ladainda do «e que descansem em paz Amen», os circunstantes enfastiados fumando até que passe o tempo anedótico de estarem ali; para não falar nos esoterismos vários ao alcance dos super-mercados livreiros, mescla de magias e sortilégio ao desbarato e de terapia alternativa para almas desemparelhadas.
Não me guiando pelo relógio do Sol há muito que me norteio pelas fases da Lua. No dia vinte e quatro de Dezembro próximo comemoraremos o Milagre da Criação. Não o bíblico, mas o íntimo, o fogo do lar aceso, aquecendo-nos o coração, iluminando-nos o caminho, o território do Amor.

15.11.11

Pinharanda Gomes

Fui há anos à sua casa em Santo António dos Cavaleiros entrevistá-lo. Modesto, discreto, quase hesitava em produzir uma que fosse afirmação definitiva. Tratei-o por «doutor». Disse-me que o não era. Como nos acompanhava uma estante de livros sobre teologia tentei corrigir, afirmando que seguramente teria estudos no Seminário (como tantos do seu tempo). Disse-me que também não. Era um auto-didacta. As tertúlias de Lisboa tinham sido, nos cafés, a sua sala de aulas. A Filosofia Portuguesa o seu amor.
Trabalhava na Massey Fergunson na venda de tractores. Estudara nas horas livres, pela noite fora. Lera na Biblioteca Nacional no tempo em que ela abria à noite. Tirava à boca para comprar livros. Instruía-se sempre. Escreveu nem sei quantos livros. Tentei encontrá-los todos. Teve a gentileza de me oferecer alguns. 
A entrevista era sobre tudo e sobre nada. A minha ignorância impedia-me de formular as perguntas certas, a sua sabedoria vedava-lhe respostas simples.
À saída mostrou-me uma pequena gaiola, extasiado ante uns passarinhos e os ovos que chocavam. A vida cumpria-se. Uma vez cruzei-me com ele na Lapa. Ia consolar o Orlando Vitorino, fazendo-lhe companhia.
Nasceu em Quadrazais, mas renasce como exemplo no coração de cada um. Um dia um jornal, creio que o Diário de Notícias, perguntou-me qual foi a pessoa que mais me impressionou. Disse: Jesué Pinharanda Gomes.
Hoje, em viagem, leio esta notícia: O Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) atribuirá, no próximo dia 19 de Novembro, a "Medalha de Mérito Cultural" a Jesué Pinharanda Gomes, um dos mais importantes nomes vivos da Filosofia Portuguesa. A cerimónia de homenagem realiza-se pelas 19:00 na Sociedade da Língua Portuguesa (SLP), em Lisboa. A entrada é livre.

17.10.11

A metamorfose do ser

Talvez porque o mundo das obrigações hoje pese, ou as preocupações tenham, porque aliviaram nalguma das suas frentes, gerado o vazio e com ele o cansaço, ou porque um homem não é só o que tem de ser mas é mais, quanto mais, aquilo que gostaria de estar a ser, e há tanto mundo que não se vive, lembrei-me dela: Dalila Lello Pereira da Costa. 
Tão poucos a conhecem. Sim, sabem-na os da Filosofia Portuguesa. E juntei-a, eu, à sua obra, tomo a tomo e vivo agora o receio de me faltar qualquer escrito menos conhecido ou que a minha ignorância desconheça.
E fui buscá-lo, ao livro A Força do Mundo, que editou em 1972 e creio já citei aqui, porque trata do êxtase da alma, o decapar a personalidade até à transpessoalidade. São «iluminações, sonhos, visões, intuições poéticas», a metamorfose, enfim, a possessão.
Vejo que nem esse livro acabei e queria lê-lo todo. Felizmente «o tempo não passa, não é linear, mas esférico, como o espaço». Por isso esta noite continuo até o mais tarde que puder e amanhã começo o mais cedo que conseguir, circular a vida.

27.8.11

Retomando estrada

Nenhum homem é homem sem a alma a animar-lhe o corpo, como fogo que seja a causa do fumo. Nenhuma alma sobrevive sem alimento, nenhum outro alimento nutre e fortalece salvo o da filosofia. Nenhum homem é vivo sem ser da Natureza uma parte, nenhum ser existe fora da sua Pátria, nenhuma alma filosófica me preexiste que não possa ser a da filosofia da terra portuguesa. Foi por ela que cheguei aqui, folheando em arroubos Leonardo Coimbra, tacteando, pedagógico, Álvaro Ribeiro, dispersando-me por Pinharanda Gomes e sistematizando-me em António Quadros. Depois foram todos os outros, coleccionando angústias com o Fidelino Figueiredo, passeando, incerto, com o Agostinho da Silva e tantos e tantos mais: Orlando Vitorino, José Marinho, Fernando Pessoa... Não quero mencionar mais nomes porque não quero esquecer-me de nenhum nome, nem quero que se note que me falta conhecer tantos nomes. 
Esta manhã reencontrei a Nova Águia e dei conta que há vários números que a perdi. E a partir dela fui a esta obra de amorosa dedicação, uma bibliografia para quem quiser iniciar-se e complementar-se. E senti, como um pulsar cardíaco, vontade de seguir em frente pela longa caminhada, retomando estrada.
Acordei, pois, de uma longa sonolência, a força da luz a iluminar-me a existência.

9.8.11

O mundo e os seus intérpretes

A ideia recolhia-a numa entrevista que a Maria Filomena Molder deu à revista Ler. A conversa não saiu fluente e a própria pergunta-se quanto a terem sido, entrevistadora e entrevistada, demasiado abstractas. Há, porém, um momento em que um princípio é ilustrado por um exemplo. E embora a exemplificação não seja a mais digna forma de enunciar uma ideia ou de a demonstrar no caso a sua força ilustrativa ganha corpo.
Trata-se das declarações que são, logo que proferidas, comentadas imediatamente pelo entrevistador, o que é o caso das afirmações oriundas do território da política. O efeito do fenómeno é a anulação da distância e a geração da instantaneidade do efeito. O destinatário do dito nunca a chega a ter intervalo para meditar no ouvido e para formar uma opinião sobre o escutado pois logo o comentador surge a apontar como um sinaleiro o sentido único da interpretação e o desvalor de interpretações em contrário.
Claro que como há, e a tanto alude também a entrevistada, "comentadores de comentadores" o mundo resolve-se entre os seus intérpretes.

12.7.11

Folclore ideológico

As circunstâncias adversas, a mobilidade reduzida. O livro imenso, pesado, 1029 páginas, letra miúda, espaço apertado entre as linhas, como objecto de difícil manuseio. Mas há muito que cortejava.
Doeram-me as gralhas, e dei logo com umas quantas, inadmissíveis num livro da Imprensa Nacional. É o Pensamento Português Contemporâneo, 1820-2010 de "Miguel Real", o pseudónimo literário de Luís Martins. Tiraram-se oitocentos exemplares, o que mostra que há tão pouca gente interessada no pensamento português, ainda que contemporâneo.
Comecei por capítulos quase finais, o dedicado a António Quadros e a Dalila Lello Pereira da Costa, esta «autêntico mito vivo da filosofia portuguesa», quase desconhecida salvo por um pequeníssimo círculo, aquele com obra «envolvida por artigos de panegirismo de companheiros e amigos das lides filosóficas», «remetida para o limbo do "folclore ideológico"».
Miguel Real organiza a sua obra - que compila um seminário que leccionou na Faculdade de Letras de Lisboa - antecedendo-a de uma apresentação. Categoriza o mundo do pensamento entre o «providencialismo messiânico da Igreja e do Estado» e «o racionalismo e empirismo europeus» e quanto às modernidades que deram ao todo a dinâmica da singularidade separa os vanguardismos - todos os movimentos culturais, políticos e sociais do século XX de alto valor prosélito, providos de instituições e órgãos, cujo objectivo máximo seja, não a "reforma de mentalidades" (...) mas a tomada política do aparelho de Estado - dos modernismos - - afinal «todos os movimentos culturais portugueses, de baixo valor prosélito, de índice grupal, não raro sobrevivendo isolados, despercebidos ou repugnados pela mentalidade dominante, apenas providos de órgão informativo, cujo objectivo máximo consiste na expressão individual estética e/ou na "reforma das mentalidades" por via da difusão de novos conhecimentos e novas atitudes culturais».
Livro interessante, compêndio, há, porém, a desdentá-lo o feio das generalizações. Falando da Universidade refere-a como «casa do saber transformado pelos positivistas da I República e os professores acéfalos do Estado Novo em casa de elite decepada de inteligência». Ora houve, mesmo com o Estado Novo e no Estado Novo, gente com inteligência, saber e cultura de excelência, pelo que esta indecência qualificativa é cientificamente errada e culturalmente vulgar. Tem apenas a vantagem de ser "popularucha" e como tal levar o autor à glória fácil. Não havia necessidade. Já nem cito o que diz da Igreja e do Estado, porque se intui do excerto. Mas entristeceu-me ler o que li.
As circunstâncias eram adversas, eu sei, trazerem-me o livro foi um carinho, começar a lê-lo foi um esforço. Mas confesso que o tomei nas mãos com respeito e apreço. Nada no que nele é magnífico fica em causa. E sobretudo tudo o que nele há de útil fica salvo. Vou tentar lê-lo todo apesar de imenso. Mas é um repto.

4.7.11

Os mundos por haver

Não é historiador mas interroga a História porque, tendo aprendido com os orientais a sabedoria como forma de saber, está consciente de que o passado é incerto.
Ao ouvi-lo no domingo, em Constância, lugar de enigma e território de dúvida, retive aquilo de que faz método. a existência de uma "verdade intuitiva".
Para quantos viraram as costas à arrogância do cartesianismo e seu racionalismo ilusório, que faz da coerência critério e do pensar preâmbulo de ontologia, está ali o caminho e o destino. É a terra mágica da adivinhação e do pressentimento, lugar de poetas e de astrónomos, os que têm os olhos no céu e nos ouvidos a música das estrelas.
Talvez seja a certeza íntima do caminho certo que conduziu Bartolomeu Dias e a ponderação dos ventos que o fizeram arquear o rumo em viagem, largando o funesto bordejar da costa africana Sem isso não tinha havido Índia nem o sonho de embarcar, nem gesta de Portugueses ou os mundos por haver.

1.5.11

Filosofia Extravagante

Reencontro-me hoje com os Cadernos de Filosofia Extravagante e neles com a asserção «Não há filosofia portuguesa porque aquilo que há não é uma disciplina». Discutível porque problemática, é a reedição da questão que tem mais do que cinquenta anos. Haverá uma filosofia que seja a dos portugueses, ou uma filosofia para questões que sejam as de Portugal? E se sim a qualquer delas porque teria de ser uma «disciplina» com o que tal significa de regra e cânone e ordem e sistema? E se não porque será não só por não ser disciplina.
Reencontro-me hoje com os Cadernos de Filosofia Extravagante e neles com um estudo de Cynthia Guimarães Taveira que é um reflectir sussurrante e tranquilo sobre o amor à sabedoria, entre a afirmação do ser e do não ser, do que é do que não está.

15.12.10

Rumando ao mar

Talvez uma mística, encontrada nos labirintos do ser, como um gorgolejar espumoso de lava que explodisse, incontida, a irradiante luz, estrelar, a reflectir-se em meteoritos alucinantes, ou decifrada no murmúrio de uma prece, como símbolo a símbolo, na lápida de uma recolhida capela, que a corografia sagrada explicasse, se encontrasse a chave da Tradição e a carta de marear rumo ao Futuro seguindo para Nascente.
Talvez num espinhoso refúgio, no matagal esconso onde nenhuma patrulha da Ordem chegue e o fogo do Império não arda nem nenhuma febre de domínio ou desejo de território.
Talvez na individualidade dos poucos portugueses sem sonhos de Índia ou pesadelos de Europa, aventureiros naquela e nesta mendigos e na sua própria casa hóspedes dos seus.
Talvez nem aí ou em lugar algum e apenas no momento topográfico impossível por ser o da não intersecção do tempo e do espaço, surja o Vazio e com ele o Absoluto e assim a possibilidade de reinício, esperança do tudo o que há e fé no que poderia ter havido.
No final principias, tornado outro. Moribundo o Estado, agonizante a Nação, a alma de Pátria renova-se com o nascer da primeira caravela. Rumando ao mar aumentámos o Mundo. Na praia da memória, fiam-se as redes da História, viúvas dos que não voltaram, saudosas dos que poderiam tê-las levado, mães prováveis de ventres irrealizados.

12.12.10

Um Deus risonho

Hoje o Senhor Deus veio ao meu encontro na forma de «A rosa é sem porquê». Porque esgotada a cega confiança no determinismo e sua causal consequência, em nome do qual nascem todos os deveres para que resultem, certos e seguros, todos os benefícios, perdida, errática, a crença ante o probabilismo e sua possível decorrência, por causa do qual se joga em todas as roletas para se obterem todas possíveis as fortunas e mesmo as quase inatingíveis, ficou-me, como resíduo de esperança e território de fé a terra de ninguém das convicções que a Terra oferece e o Céu promete.
Li-o, então, ignorante que não tinha reparado nele. José Tolentino Mendonça trouxe-me pelo riso, a oportunidade do divino. No mundo dos deuses, o Seu, brinca, o pulo para o infinito afinal um saltar à corda, como a eterna criança que jamais fosse Aquele que os homens pregariam na cruz, do Pai esquecido e sem Mãe que o consolasse.
O livro chama-se «O Hipopótamo de Deus», o diálogo com Job, a teologia no fio da navalha, o Todo Poderoso nivelado ao Diabo, iguais no divertimento, como jogando ambos, perversos, aos dados, sobre a espoliada criatura e sua alma que à danação fora condenada e à sua estrumeira.

21.11.10

A crise

Li isto ontem, tarde de sábado, na Sociedade Harmonia Eborense. O tema, a crise. Juntos, Ricardo Paes Mamede e Manuel Branco e uma assistência interessada e amigável. Uma tarde memorável. Obrigado a todos. O texto corresponde ao meu sentir mais profundo


A ideia de crise está presente no vocabulário do quotidiano, nas notícias, no subconsciente de cada pessoa. Chegou mais evidente às economias individuais e aos orçamentos domésticos por efeito do péssimo momento do sistema financeiro, em ameaça de “crash” com todo o cortejo de lembranças por loucos anos vinte.
Mas ela é omnímoda, generalizada. Fala-se na crise da instituição familiar, na crise do sistema educativo, na crise de valores, na crise da justiça, da autoridade, de crise da língua ante o novo Acordo Ortográfico.
Ante um tal panorama é de admitir que estamos a assistir a uma decadência de civilização, mais do que à agonia de um sistema de organização social.
Outros, biblicamente apocalípticos, vaticiam o fim dos tempos, o surgimento da Besta 666, a crise da própria existência.
Um destes dias uma daquelas revistas coloridas que têm muitas páginas de praticamente coisa pouca a propósito de tudo o mais, titulava na capa “2012 o ano do fim do Mundo”. Estamos lá quase, aproveitem para a orgia final com a vida os que ainda não morreram por dentro, ainda que já aparentemente mortos por fora. Mas os media simplificam o verosímil e o leitor toma o plausível não como possível mas como certo.
E a crise ganhou assim contornos necrológicos.
No meio deste despautério verbal, em que a realidade denotativa – o território da substância que os conceitos exprimem e as definições enunciam – é incrementada pela quase ficcional realidade conotativa – esse mundo extenso dos “a propósito” – e em que os mundos periféricos das falsas analogias são chamados a aumentar o mundo nuclear das ontologias conhecidas, assim como os aterros criaram a Holanda, é caso para dizer que em matéria de crise o panorama é, de facto, crítico.
Chegados a este ponto abissal e agónico que poderei eu dizer que ainda valha a pena ser dito?
Convencer-me, em primeiro lugar, problematizando o problema, e ante alguma supresa talvez, que a crise não é uma questão problemática, sim a solução. A desagregação dos sistemas é a forma pela qual a sua entropia gera novas formas adaptativas de organização, a crise é o momento em que a síntese se atingirá pela dialética da antítese.
É assim, num exemplo macroscópico, com os sistema galácticos que explodiram no cosmos, os sóis que se apagaram gerando universos gelados, de que nos chegarão partículas milhões de anos depois. Foi graças a isso tudo que a Terra surgiu e nós com ela.
É assim com o mosaico europeu que trouxe e levou o Império Austro-Húngaro, a Prússia e o Reino de Leão, a cidade de Cartago e o Reich dos Mil Anos, o Império Romano e Terra do Preste João, as Repúblicas, Ducados e Principados do que hoje é a Itália do novo Calígula, um mundo de fantasia e de precariedade.
É assim com as patologias do espírito quando a loucura vem a gerar novos patamares de lucidez incompreensível, cujo solilóquio só o seu falante autor entende, ou as bizarrias equizofrénicas da escrita em implosão verbal, sem pontuação e sem nexo, levando à glória o inenarrável e o irrepetível e gerando assim Literatura e a sua contemporaneidade.
É assim quando a Natureza, num espirro de constipação telúrica, ocupa o espaço a que tem direito, levando pela frente, em lava ou aluvião lamacento, tudo o que de humano se construiu, mundo precário, afinal raquítico, em suma liliputiano.
É sempre “em forma de assim” que a crise de tudo gera o nada, de onde o todo surge. O futuro é, desta forma, apenas uma forma de encontro da desagregação do passado, o ponto provável do seu novo equilíbrio.
Se Deus existir e tiver sobrevivido a Nietzsche, ele não é o ponto inicial do qual tudo emerge, sim o ponto final para o qual tudo converge, espécie de buraco negro no qual a existência se afunda, em remoinho, para se reorganizar, como em cadinho alquímico, vida morta gerando vida, o ser primordial a ser semente e rosa e fruto da criação.
Mas mais do que aquele optimista convencimento se trata. A haver crise, ela é, antes de qualquer outra, uma crise existencial, antroplógica, inerente mais à pessoa do que ao indíviduo, mais densa do que a do cidadão.
Vejamos, em retrogressão mental, este mundo. Crise de cidadãos, primeiro.
A crise da cidadania revela-se, em primeiro registo, no baixíssimo nível de participação na vida cívica: não é só a escassa millitância em causas públicas, é mesmo a cada vez mais alta, e progressivamente mais esmagadora, taxa de abstenção nos cada vez mais passivos actos eleitorais, em que a Nação é convidada a referendar as escolhas das cúpulas partidárias, a que não tem acesso, e a quem se hipotecou, progressivamente menos confiante.
Há hoje, sob a República, democracia formal mas não há movimento democrático. Os partidos de Governo escolhem os seus deputados. A democracia esgota-se no acto de voto, como o poder do dono no acto de emitir a irrevogável procuração. Ao sufragar, o eleitor aliena vida, suicida-se civilmente. A urna eleitoral é o esquife da sua morte cívica. O dia de eleições é o do cortejo da preguiça. A partir dali o governo da cidade passa a ser coisa dos empregados do poder. A venda do voto é o primeiro acto de corrupção.
Mas não só: a ideia da evasão fiscal como acto de legítima defesa cidadã face a um Estado predador e depreciador é outro sintoma característico do ocaso do civismo, tal como o progressivo divórcio entre o corpo eleitoral e a classe representativa que ele elege. No primeiro caso, sente-se o Governo como uma alteridade, o terceiro pagador e pai de todos os possíveis subsídios, no segundo sente-se o poder político como o fruto de uma escolha libertadora, primeiro, e de um desprezo catártico logo no dia seguinte a ser escolhido.
Não é o Estado supra-colectivo, é o Estado infra-individual aquele que construímos. Desprezamo-lo, ao Estado, como a inimigos, consideramos os que para ele elegemos como gente de segunda, só porque sim. Faz parte da cultura de quem votou pelo poder estar na oposição, como higiene e como caução para o futuro.
Bloqueado o sistema pela sua própria natureza hipócrita, nele a falta de expressão política por participação cívica substitui-se pelas manifestações de rua, como tentativa de indignada pressão colectiva.
Assim como a cólera é a raiva dos fracos, muitos dos que se revoltam fazem-no apenas porque incapazes para a revolução. A agitação simula a mudança.
A patologia da democracia representativa é a a alucinação epilética dos seus actores que faz dos espasmódicos tumultos de rua sintoma de doença através da ilusão da cura.
Limitada a democracia pelo sistema partidário, aprisionado o sistema partidário pela cacicagem que o domina, aquela acaba por ser, não apenas a expressão do indiferenciado maior número mas sobretudo a ratificação, sem alternativa, do sentir da imensa minoria que, em esquema rotativo, forma o bloco central de interesses que domina o Estado e assim governa a Nação, dela se aproveitando.
Trata-se, no que à imediata crise de hoje respeita, de uma crise financeira, derivada da hipertrofia do mercado especulativo de capitais sobre o aparelho de produção dos países.
Crise do capitalismo, diga-mo-la, inerente ao seu modo de produção, tem o seu epicentro nas contas públicas e no sistema bancário – como cerne que são da capitalização – e só tem, na lógica monetarista do sistema que nos governa, uma única solução, a da sobrecarga tributária sobre as forças produtivas mais indefesas, tendo em vista a colecta forçada e expropriadora para o reabastecimento do mercado com os meios de liquidez de que carece para a sua sobrevivência e que se vai buscar ao aforro privado ou quando ele já não há, ao exército de reserva do desemprego forçado.
Crise de cidadania, a presente é também a crise do indivíduo, a qual se gerou com a desagregação das relações sociais.
À imagem de marca do individualismo burguês sucede na contemporaneidade a do individualismo pan-proletário, o generalizado individualismo.
À sociedade de massas sucede a atomização social. A passividade consumista, o amorfismo intelectual, a anomia moral, a atrofia do gregarismo, são hoje as características da pulverização social em que se caíu.
Molecularizada, a sociedade torna-se mero somatório estatístico, em que à personalização segue a numeração. Cada um é o número fiscal, o do BI, o código do cartão bancário, o da password sem o qual o mundo cibernético se torna promíscuo, inseguro e devassado. É pelo simples número que o mundo da informação sabe quem sou o complexo eu.
Realidade digitalizada, tudo se decide hoje na base do inquérito e da sondagem, à diversidade do ponto de vista corresponde a padronização da resposta-típica.
A opinião tornou-se a resposta a um questionário em quadradinhos.
Certa matemática ocupou o lugar da poética e da música, e na matemática não passamos da aritmética, sociedade de adição, de subtração, de multiplicação, de alguma divisão. Tudo passou a ser mensurável, por isso tudo passou a ser contável, pior, comparável. Num mundo de fracções a ânsia tornou-se encontrar o menor denominador comum. O abaixamento do nível médio é a perversa consequência do desejo da redução do múltiplo ao uno.
As redes sociais, essas aparência de comunidade e de aldeia global revisitadas, são hoje janelas de comunicação de solidões desencontradas.
A imediatividade discursiva que a net permite gerou o nada comunicacional, reiterativo, em cíclico copy paste, em que se amputa a imaginação e se legitima o plágio.
O «gosto» alheio como resposta a um post próprio evita o ter de dizer porquê. A comodidade expressiva internáutica torna o palestrante um símio dactilógrafo de sentimentos singelos padronizados.
Surgem aqui os traços psicológicos do nosso tempo: primeiro, a depressão como forma reduzida, mas por isso tolerável, da angústia existencial, depois o triunfo do contável no novo mundo técnico do fungível e do computável.
A angústia, ao perder a dignidade de categoria existencial de manifestação do desespero humano, encontrou na tipologia terapêutica a forma redutora que a torna uma mera patologia asténica, que a química farmacológica se candidata a tratar.
Uma nova família de fármaco-dependentes, aditos a drogas legais, garantem assim o equilíbrio básico que os mantém dentro da convivialidade aceitável e lhes permite serem forças de trabalho aproveitáveis no aparelho produtivo que ainda funciona em estado pré-falimentar, que os normaliza, em suma, garantindo-lhes liberdade de circulação ambulatória no hospício em meio aberto que são as sociedades contemporâneas e onde “esses loucos que nos governam” são arquétipo, modelo, e forma de autorização para o viver respeitado, ainda que inimputavelmente.
E, no entanto, antropologicamente, ela, a angústia, é, enquanto intranquilidade fazedora do génio, ou enquanto prostração anestesiante do comum mortal, sintoma daquele inacabamento, daquela incompletude do homem, que o caracteriza como ser defectivo, inacabado, irrealizado, lançado, porém, ao mundo, ainda em gestação, da borda fora da barca de deuses cruéis que o condena, pedra bruta, à derelição, ao abandono, à entrega ao jogo das circunstâncias até que em pó final se transforme, Sísifo da sua eterna tentativa de refazer-se.
Só que hoje não há angustiados, sim deprimidos. O Prozac, enquanto Viagra do Espírito, resolveu a questão, tal como o comprimido azul permitiu a toda a luxúria sexo.
Além disso ao extâse místico sucedeu o orgasmo venéreo, as entranhas do corpo passaram a ser flatulência sucedânea dos arroubos da alma.
Ei-la, na sua intemporalidade a crise dos nossos dias.
Falta autenticidade ao humano. A metamorfose do ser passa pela redenção. Tentaram-no os totalitarismos políticos que pretenderam criar não apenas a “Ordem Nova” mas o “Homem Novo”. Em vão. A pequenez dos resultados contrastou com a delirante idealização dos projectos. Ficaram, na arqueologia do terror, os gulags e as câmaras de gás, os campos de reeducação e os reformatórios psiquiátricos, os campos da morte e o patíbulo dos condenados, o genocídio em massa e o suicídio individual.
Tentam-no as sociedades iniciáticas, esotéricas ou sacramentalizadas. Debalde também. A mesquinhez do interesse conspurcou o templo, profanizando o culto e o rito. A espiritualidade passou a ser resíduo monacal de uns quantos segregados, a transcendência uma alucinação dos incompatilizados com a vida.

Termino.
A vida é uma petição de princípio. Para nasceres é preciso estares vivo. Surge aí logo, no corte do cordão umbilical, no isntante do primeiro grito de espanto e de dor, o estado de necessidade, a luta pela sobrevivência.
O homem é o único ser para quem o mero instinto não permite a sobrevivência.
Pode morrer-se, porém, sem se ter vivido mas apenas sobrevivido.
Eis, aqui, no seu âmago íntimo, a crise de todas as crises: o mundo vegetativo de corpos que caminham para a mineralização, julgando-se humanos, escassamente humanos.
Comparado com o défice de almas, o défice das contas públicas é assunto para intendentes.
Do Oriente esfíngico e fatal chega-nos o sinal e o símbolo: a nossa paganização é a nossa perdição. Jogando aos dados quanto à sorte do pobre Job, o velho Deus, num momento de dormência, perdeu a favor do Diabo. A danação surgiu aí. O Ocidente tornou-se Poente.
Um dia acabará tudo. A vida, vale, porém, a pena. Não por ser uma inevitabilidade. Sim porque é uma milagrosa probabillidade. No labirinto dos tempos um dia um homem e uma mulher... e tudo assim surgiu e surgirá, nem que tenha de ressurgir porque assim está escrito.
Talvez haja esperança onde faltar a fé.
Na síntese de tudo quanto se contradiz, no menor denominador comum a quanto possa ser decência, o Homem deve ser o que é. A crise nasceu no dia em que alguém tentou que ele fosse o que devia ser.
A norma matou o ser. Com a primeira lei surgiu o primeiro carrasco.


4.10.10

Para já, para já

A história não é minha. Eram dois amigos, vindos da pobreza com o sonho de ver o mar. Um deles conseguiu-o. Arranjou trabalho na orla marítima. O outro ficou na longínqua santa terrinha. Ao apelo do primeiro, moveu o céu e a terra, juntou migalhas e comprou a viagem. Viu-o então, o mar aquela imensidão de água que se adivinha para lá do próprio horizonte. Silencioso, absorto num pesado pensamento, perguntou: «com tanta água de tanta chuva, de tanto rio, com esta água toda deste mar, como é que não somos engolidos?».
Suspenso, hesitante, remoendo quanto ao que dizer, o amigo retorquiu-lhe, enfim, a resposta que resume o modo como, afinal, na vida se enfrenta o complexo através do simples: «bom, para já, para já, há as esponjas, não é?...»

7.9.10

Uma janela para o mar

Podia ser em dia certo, como fazem os que prometem mudar no dia um de Janeiro de cada ano, ou quando comemoram o dia do aniversário. Podia ser porque reabrisse qualquer coisa como por exemplo os tribunais e a época dos saldos, ou por ser dia da Feira do Relógio ou Temporada na Gulbenkian.
A lógica comemorativa pressupõe uma dupla crença: primeiro na cronologia que é, afinal, uma forma de se quantificar a vida; depois na mudança que é um meio de desconfiar da retrogressão.
Desde que se inventaram os números o Homem passou a ser um infeliz. Mesmo quando os árabes trouxeram o zero que os romanos desconheciam. Aí adicionando nada tudo se torna maior, expressão surreal do paradoxo da nulidade avantajada. Com a Álgebra veio a fantasia de que a partir de incógnitas se aplicam as regras universais a casos particulares em que cada um se sente semelhante a todos os demais. Enfim tudo termina na lógica da equação. Crente nas virtudes do equilíbrio, o homem, poeira no cosmos, nem pensa que cada ponto é equidistante ao seu começo e ao seu fim, porque o tempo é circular.
Quase às duas da madrugada do dia 7 de Setembro, dia ocasional num calendário incerto, decidi voltar aqui. Como um viajante nocturno a quem lhe apetecesse ver o mar.

10.8.10

A viagem pela noite

A ideia do livro é ser uma reportagem, porque os autores foram admitidos no seio da Ordem da Cartuxa, franqueando portões até aí quase inexpugnáveis e vendo quebrar em seu benefíco a regra do silêncio e da clausura. Está escrito como quem escrevesse uma novela policial, em busca de um segredo que vai sendo desvendado ao longo das páginas do álbum. Há algo de O Nome da Rosa, talvez porque o tema o propicia.
Há momentos em que o o leitor supreende-se: quando descobre que nos primitivos tempos os frades que são contemplativos eram servidos por escravos hoje por irmãos que fazem, pela glória de Deus, o trabalho braçal; quando, sem ver citar origem, lhe dizem os autores que por ali se defende a pena de morte e que a Igreja não poíbe a pena de morte antes a aconselha.
Talvez para quem sinta um apelo à transcendência, o livro, escrito por Nacho Doce e por Paulo Moura, vocacione, para quem exija rigor à alma o livro facilite um pouco.
São humanos, claro, os retratados, na segunda recta da vida, e por isso a imperfeição pagã se projecte ainda e suas tentações meridianas e o livro tenta retratá-las mais ao mistério litúrgico daquela comunidade de votos de obediência.
Li-o parte desta tarde e disseram-me há momentos que poderia guardá-lo como meu. Isso permitir-me-á relê-lo, sublinhá-lo estudá-lo. Implantada em Portugal em 1587, a Cartuxa está em Évora. Renasceu ali.
Os monges falam a Deus sobre os homens, em oração, não falam aos homens sobre Deus. Fosse assim eram pregadores, convictos que a palavra traria a fé. Fé que é uma questão de vontade não de sentimento. A mística nasce da contenção que interioriza não do êxtase que implode do ser a alma.

31.7.10

O salmo e a redenção

Talvez porque fomos educados no cinismo da dialética, não a grandiosa e monumental hegeliana, catedral escorada que é a celebração da sua própria legitimidade, edificação vaidosa de verdades que o são por si mesmas e pela sua aparência de coerência intrínseca, mas pela outra, a cínica, utilitária, a do relativismo histórico e da luta dos contrários, que se não anulam mas da mentira fazem verosimilhança, e dão fundamento à carnificina e da pessoa fazem indivíduo e deste cidadão, por isso dizia caímos nesta anemia mental em que qualquer rasca propaganda nos seduz, quaisquer causas precárias nos mobilizam e demos nisto amibas tele-espectadoras e de tablóides folheantes, no mais zapantes internautas de um cosmos mental vazio, clicantes ratos entre vivas e olás e gosto disto e cito que citaste o que foi citado.
Mas sucedeu que o meu incerto ser em reconstrução encontrou e eu li e sublinho e agora mastigo-o com dentes e o regurgito, um extraordinário livro que Maria Almira Soares escreveu sobre um menino que assinava Vergílio António de Oliveira Ferreira. E que foi depois um «moinho de ensinar», e como o Mário do Cântico Final serviu casas «de saber manufacturado, burocrático», e sofreu «ferozes meninos do liceu» e a «tocante suficiente dos colegas, sérios, correctos, cronometrados» e tudo e tudo por instantes de glória e hossana porque há o milagre da excepção. E escreveu admiravelmente.
E nesse livro, que me tem feito companhia desde ontem, eu li o salmo que é o da redenção de uma vida e uma profissão de fé na ressurreição diária pelo amanhecer: «Descobrir a contradição do que não é contraditório que é afinal a vida com a sua exactidão, é ter realizado o maior esforço de compreender. Mas realizá-lo é não ser homem é morrer. Por isso eu morro vivendo». 

19.7.10

O coleccionador de angústias

Regresso hoje aqui com o sentimento de surpresa. Li a esmo o que escrevi. Perguntei-me porque teria saído deste lugar, horto de reflexões. O título deste post fui buscá-lo a um livro de Fidelino Figueiredo. O livro começa e termina com Dom Quixote, o quixotismo forma de angústia mansa, de ilusão risonha em que a idiotice é ingénua sabedoria.
Este blog começou por fazer jus literal ao nome e tratou nos seus primórdios de geometria, problematizando o pensamento a partir daí, como a Ethica Ordine Geometrico Demonstrata do judeu português Baruch Spinoza. Depois caminhou para o território em que a geometria o é naquele sentido em que a palavra vem abismalmente mencionada no Livro do Desassossego de Fernando Pessoa. Trata da filosofia portuguesa e de um modo filosófico de pensar Portugal.
Regressei hoje, o pensamento martirizado de reflexão. Talvez haja alguma sombra em que possa haver  inteligência sem racionalidade nesta silva de enganos em que há quem julgue que só há saber na epistemologia, verdade na ontologia.

10.5.09

O Futurismo e o futuro

Multiplicam-se aparentes coincidências. Tinha estado com o livro sobre ele há uns dias, folheando sem saber sobre o que escrever. Inspirou-me então e este post foi o resultado. Hoje levei para ler o número três da Nova Águia, que é dedicado a Agostinho da Silva. Comecei pelo fim e a gostar do que lia, talvez por ter sabido encontrar o meu canto de recolhimento numa catedral pingue de fiéis, como é este projecto. Foi então que o vi, coincidente, o breve artigo sobre um pintor que pouco pintou. Escreveu-o Cristina Pratas Cruzeiro, sobre Guilherme Santa-Rita. Lembra ela ali o «Futurismo, ideologicamente assente na teoria da selecção natural de Darwin» e há aqui em frente uma exposição sobre Darwin que esta noite foi revista na minha memória de a não ter visto. Os manifestos futuristas fizeram cem anos em 20 de Fevereiro. «Queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo», escreveu Filippo Tommaso Marinetti.
Regressei agora a casa, para conferir a citação a seu respeito: «dispensava força nêurica a mais, em projectos maravilhosos,em concepções imprevistas, em imaginações faulhantes, para poder materializar o que projectava, o que concebia, o que imaginava (...)». Escreveu Carlos Parreira, em 1918 sobre aquele que «terá deixado muito mais acções futuristas que obras». Monocromático, cubista, bi-dimensional, A Cabeça, o seu momento de geometria abstraccionista.

20.4.09

O Dr. Pomadinha

Consegui um recanto de tempo para ler uma palestra que Pinharanda Gomes proferiu em 20 de Março de 2006 na Sociedade Histórica para a Independência de Portugal sobre o pensamento de Agostinho da Silva. Texto curto, juntam-se-lhe os de duas outras intervenções do ilustre natural de Quadrazais proferidas nesse mesmo ano sobre o filósofo «caminheiro, mendicante ou itinerante», como ele lhe chama com afectuoso humor. Editado pela Zéfiro.
«Em contra do signo sebastianista, Agostinho escolhia o signo henriquino, o espírito de acção contra a resignada paixão: da arca fez barca».
Aprende-se muito em pouco tempo. Às vezes são pormenores que fazem sorrir, suma lição num mundo tão façanhudo. Agostinho - qual Agostinho?, pergunta-se o palestrante - publicou um estudo chamado Elogio da Academia. Documentos Literários. Assinou-o «com três pseudónimos: Doutor Botocudo Júnior, João Cabrinha e Dr. José Pomadinha». Fantástico gozo, magnífico intervalo.

19.4.09

O acaso

Li isto: «Há qualquer coisa de absolutamente selvagem nas coincidências. Elas nunca são procuradas e, no entanto, aparecem-nos sem que estejamos à sua espera. São uma espécie de Pã, no meio do caminho, sobressaltando-nos o passo, agitando-nos a alma». É um texto de Cynthia Guimarães Taveira, publicado nos Cadernos de Filosofia Extravagante, aqui.
Esta manhã sucedeu isto: escrevi esta manhã um post sobre a Clarice Lispector. Minutos depois chega um alerta Google, de que alguém tinha escrito num blog que começara há bem pouco tempo um texto sobre a Clarice Lispector: aqui.
Há qualquer coisa de absolutamente selvagem nas coincidências! Efectivamente.

7.4.09

Quadros, Bruno, a identidade do eu

Não sei quando li António Quadros pela primeira vez, nem quando me atrevi a escrever sobre ele. Foi muito antes de a vida me ter marcado agora encontro consigo. Sei é que acabei de ler o que só há pouco tempo me ensinaram ser, afinal, o seu único romance: Uma Frescura de Asas, editado em 1990.
O livro, coitadinho dele, vem maltratado com gralhas, pois deve ter sido composto por um tipógrafo calino como eu e revisto por um catador pior ainda do que eu quando me armo em revisor.
É um «livro insólito», diz-se na contra-capa. É um livro simbólico diria eu.
Na aparência é uma biografia de José Pereira de Sampaio, que passou para a História como Sampaio Bruno, mas eu creio que é, em muito, uma biografia espiritual do próprio António Quadros.
Li-o em quatro fôlegos. A narrativa é a de um homem, João Pereira, que está no leito de um hospital onde acabará por morrer. Qual é o seu nome alcança-se em dois momentos. Que se chama João na página 20, que é João Pereira na página 89.
De que trata? De muitas coisas, todas as que têm valência nas entranhas de um homem em crise ante si próprio: de Deus e dos Anjos, dos homens e do demais.
A narrativa assume a forma de um diário, que vai entre 6 e 11 de Novembro de 1915. Foi na verdade nesse primeiro dia que o autor de O Brasil Mental foi operado pelos cirurgiões Júlio Frankini e Severiano José da Silva. Sofria, desde os poucos meses de idade de uma rotura na virilha direita, estado que se agravou, por descuido seu, quando sofreu de uma hidrocele, que o impedia de caminhar. Morreu pelas 19:00 do dia de São Martinho.
Descontado o muito que é semelhante na história, importaria descortinar o que marca a pouca diferença. Uma biografia de Quadros está por fazer. Penso que ele a iniciou biografando-se através desta biografia romanceada. «Eu não podia escrever a eu, porque o eu é o mesmo e não tem outro. Onde há unidade de substância não pode haver dupla consciência», deixou ele, como uma chave para o mistério desta sua estranha criação.
Um seu dedicado e tão esquecido nessa dedicação, Jesué Pinharanda Gomes, disse na Colóquio que ele escreveu sobre «todas as escalas do humano e do divino saberes»
Hoje nem Quadros nem Bruno existem. É pena que criaturas destas se vão. Sei que o fazem de um modo singular: «Fechei os olhos para não ver que me estavam a ver», escreveu o biógrafo romancista. É neste acto de timidez que se lhes resolve a agonia de morrerem.

30.3.09

Optimismo levitante

A dedicatória era singela, amiga: «quando folheares este livro lembra-te dos dois dias de grande camaradagem que passámos no Redondo, 14/8/56». Encontrei-a, mal arrumada, na estante de literatura de ficção portuguesa, a edição tirada em 1956 pela Livraria Tavares Martins do livro A Alegria, a Dor e a Graça de Leonardo Coimbra, a que o editor juntou o diálogo Do Amor e da Morte. Estava num alfarrabista em Coimbra, um primeiro andar de preciosidades. Obra revista e prefaciada por Sant'Anna Dionísio, comemorativa de vinte anos do desaparecimento do filósofo. De ambos aqui falei, ainda ontem precisamente, tudo a evidenciar que o acaso é uma preguiça do espírito para não se confrontar com o embaraço dos acontecimentos destinados. «Podeis dizer que os indivíduos permanecem, porque, se acendeis a luz, eles surgirão», escreve o magnífico autor de A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre. Uma escrita de um «optimismo levitante» lhe chamou o prefaciador. Necessária escrita, indispensável optimismo, chegado a Lisboa, ferroviariamente.

29.3.09

Começar de novo

«Pensamento madrugante», chamou Sant'Anna Dionísio à filosofia de Leonardo Coimbra. Apanhei a frase esta manhã ao folhear os estudos que o teólogo Ângelo Alves dedicou ao que chamou o «filósofo da liberdade e do amor infinito».
Diabolizado por tantos devido à sua conversão à fé católica, que manifestou em acto oficiado pelo excelso Padre Cruz, Leonardo chegou ao culminar desse encontro com a Graça depois de um torturado percurso espiritual. «Curiosamente, a primeira loja maçónica em que se filiou intitulava-se "Luz e Caridade"», escreve Ângelo Alves.
Terei já eu citado aqui a sua frase, pináculo de intranquilidade fazedora «qualquer dia dou por írrito e nulo tudo o que tenho feito e começo de novo»?. Talvez não. Um bom domingo. Em paz.

23.3.09

A arte de continuar português

Vem hoje à luz do dia a Fundação António Quadros, apresentada no Círculo Eça de Queirós. Vingando, dará corpo a que não se perca o pensamento de um homem que disse um dia: «Quero ser um princípio e não um fim. que, depois de mim, as tempestades sejam outras e as lágrimas mais leves!». Se há momentos de uma filosofia que marcam um destino, o que ele escreveu sobre o mal do positivismo traçou-me a rota mental. Pela sistemática organizadora, pela originalidade criativa, pela pedagogia exemplar, pela ousadia cívica, pelo amor patriótico, pela íntrínseca bondade humana, tornou-se um símbolo e, sem que o sonhasse, a explicação de um mistério que o continuaria. Num tempo novo em que frutifica, a Filosofia Portuguesa ganha outra força e vigor.

21.2.09

O medo

A alegria no coração gera a tranquilidade no intelecto. É a angústia do não saber o cognoscível que fomenta o querer saber. «O medo, diz o Zohar, é o princípio do conhecimento. Quem está aí que tema Deus?». Colho a frase num novo blog, criado, a partir de Mértola, por Abdel Hayy. Chama-se O Lugar da Alma.

18.2.09

O mundo de Deus

Publicou onze números, entre 1957 e 1962. Graças à Hemeroteca podem ser lidos todos, facsimilados, aqui. A revista 57, folha independente de cultura, teve António Quadros como seu director. Vi a menção aqui no blog Cadernos da Filosofia Extravagante, que, amável, cita este nosso descuidado espaço e em cujo texto de apresentação vejo a magnífica frase: «Algum dia o mundo de Deus há-de ser dos pobres e dos vagabundos». Acredito no acaso porque ele não é.

18.12.08

O corpo espiritualizado

Quem ler o estudo que Dalila Lello Pereira da Costa publicou em 1970 sobre o êxtase antecipa o que condensou em 1981 no livro Os Jardins da Alvorada. Está lá tudo, essa indiferenciação do arroubo anímico e do espasmo carnal, o fremente de luz e de silêncio, a possessão, o instante imóvel e depois a infinita paz da reconciliação com o outro através de si, o encontro místico com Deus, o amor de conhecimento entre os humanos.
Eis o que em Julho de 1973 está escrito neste magnífico texto a que chamou A União em Corpo de Glória (ou a comunhão dos santos): «(...) de súbito, sem te fazeres anunciar ou ver, depuseste teu beijo no lóbulo da minha fronte direita, prolongado, inifinito. Depois, na palma da tua mão direita erguida ao alto, pousei e uni a minha. Para segundo contacto, passagem. E ao alto da tua cabeça pousei a outra mão. Em três pontos, em círculo fechado de vibração amor que se sentia e corria sem fim, sobre si, para sempre e sempre gozado. Mudo e sereníssimo. Que outro corpo então conhecido? Em que vida então colhida? Em que animação dela, nele, nunca conhecida? Estreme. Línguas de fogo mil, nele vertidas e circulantes. Pentecostes, céu vertido na terra, esta nossa de agora».
De livro em livro, de memória fui consultar uma lembrança. A Subida do Monte Carmelo de São João da Cruz, de que tenho um exemplar impresso pelo Carmelo de São José em 1947, vê o seu inflamado texto antecedido de um verso que fica como um acto majestoso de esplendorosa ambição da luz pela sacrificial renúncia às trevas: «para vir a gostar tudo, não queiras ter gosto em nada». Inicia-se assim, em ascensão e ascese, a purificação activa dos sentidos e do espírito, o fim da noite escura.

4.12.08

O espírito transformador

Narcísico, falando do Alter para assim falar do Ego, Alfredo Pimenta proferiu, no dia seis de Maio de mil novecentos e trinta e cinco, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, uma lição notável. Chamou-lhe «Auto-biografia filosófica». Referiu-a como sendo a do seu amigo Francisco de Lucena. Mas era, afinal, sob este artifício literário a narrativa, em prosa esmerada, do seu próprio pensamento.
Espírito inquieto, este «enamorado da Beleza» e «esfomeado da Verdade», como o surpreendeu Henrique Barrilaro Ruas, vogou tempestuoso pelas «Sete Partidas do Mundo do Pensamento», para arribar ao porto tranquilo da Abstenção Filosófica, vindo do mar do cepticismo.
A separata em que o li, magra de trinta e quatro páginas, encontrei-a no espólio que doou à Fundação Calouste Gulbenkian.
Falando para jovens, deixou num momento luminoso dessas «considerações superficialmente amenas», a mostra da sua vincada lucidez. Citando Séneca, recusou grandeza ao efémero, ao precário, ao imperceptível passageiro tempo presente.
Basta a infinitude do futuro e pensar quanto o tempo circular corre perseguindo o seu próprio passado, para se saber, e por isso acreditar, que o flagrante instantâneo do tal tempo presente é apenas a ilusão do encurtamento da distância, Eis o que torna a nossos olhos o menor em maior, o que já foi no que ainda parece ser.
Só por esta centelha de verdade valeu a pena interromper a tarde chuvosa de um quotidiano no mais enganado.

22.11.08

Uma tragédia subjectiva

A minha geração vive a recta final da sua existência. Fomos nós aqueles para quem a vida foi matéria, o pensamento razão, o sentimento sensação, o real o cognoscível, o tempo um intervalo certo na dimensão do espaço. Fomos nós quem, por causa do naturalismo empurrámos tanto saber para a sociologia, por causa do positivismo tanto do anímico para a psicanálise, fomos nós quem sacámos do pragamtismo a amoralidade, do sensualismo fabricámos a forma hedonista de viver e inventámos a sociologia e a psicologia e todas as formas de nivelamento e catalogação do diferente e do surpreendente, reconduzindo o original ao curro da taxonomia, plantando a árvores dos conceitos onde estava o jardim dos enunciados.
A minha geração herdou os monstros da razão, filhos incestuosos da dialética perversa e seu relativismo ontológico e do aviltamento concentracionário do humanismo e fez deles formas mansas de governo e de domínio: fomos nós quem idolatrou o Estado que devora os seus filhos, cidadãos seus contribuintes, quem do egoísmo e do individualismo fez o dissolvente veneno do consumismo, que inutiliza a produção e abastarda o valor, gerando o lixo e o excesso, hipotecando o ser à usura do ter.
Foi no nosso tempo que o homem chegou à lua perdendo o mito lunar e se exilou nas estrelas alucinogénicas por ter tornado dejecta a terra que o viu nascer, transmutando o ouro do amor salvífico no ferro da guerra assassina.
Um outro mundo, porém, uma Atlântida florida, foi cultivada em discreto silêncio pelos poucos excelsos que souberam resistir ao nivelamento vil de tantos outros ninguém. Revelada pelos símbolos, astrolábios do saber esconso, encontra-se no labirinto da Criação pela fé gnóstica na necessidade de navegar. Nela o tempo gira em sentido retrógrado, a areia do seu relógio mal oculta as inscrições arquetípicas na lápida da Tradição.
Terra de mitos, de lendas e de cantares, em que o saber se alcança pela adivinhação, povoada de habitantes cuja inteligência sente e em que o coração pensa, nela morre a matemática do contável, por surgir, radiante, a poética do cantável.
Pensei hoje em tudo isso, porque o pensamento é real pluralidade do fragmentário e não a aparente unidade do sistemático.
Pensei nisso, nas doze estações da inteligência, porque, rendido ao sono, senti a proximidade daquele mundo «em que tudo é símbolo e analogia», em que «uma coisa nem parecida com a existência (vem) ocupar não o espaço, mas o modo como eu pensava o visível».
Viajei, com o Fausto, Uma tragédia subjectiva, do Fernando Pessoa. Quem descobrir a Verdade não pode sequer dizê-la nem tão pouco pensá-la. Ela é o indizível, o infinito para além do que ainda não começou. Regressei agora para vir escrever este silêncio.

26.9.08

O querer bem

Foi a aritmética quem liquidou a poesia, silenciando a música. Ao aprender a contar, o homem viciou-se no pecado de medir, perdeu a suprema graça da sua encantadora unidade. Em vez da indivisibilidade do ser, passámos à multiplicação das individualidades. Cada criatura é o que se adiciona, a vida feita de subtracções ao tempo que falta.
Depois ficou tudo imóvel, parou a música das esferas que é o contínuo em movimento. Descobriu-se o zero e com ele a posição relativa de cada um no corpo do número e com isso a ordem da sua grandeza. No infinito do firmamento contém-se a totalidade do firmamento e o sonho das estrelas que o vão gerando.
Inferiorizados, os portugueses tiram-se reciprocamente as medidas do seu exterior, anotando o total do que é visível. Ao avantajamento de bens sucede a soberba do intelecto. Há um dia em que a arrogância da maldade demonstra a exuberância de se querer bem. Reduzido à sua insignificância, o objecto do desejo cai afogado no mundo de todos os outros.

22.9.08

O pensamento inquieto

O que interessa num livro? Às vezes o que nele se escreve, outras as notas à margem com que alguém o glosou, quantas vezes a beleza da própria capa, o cuidado de tipografia, até a riqueza da encadernação.
Ora no caso desta tarde, feita da necessidade urgente de trabalhar na profissão e do cansaço mental a evitá-lo, parei por uns momentos, devolvido à liberdade tranquila, para uma visita à estante. Ali estava, impresso a mando da Editorial Império, sita na Rua do Salitre, em 1945, o Leonardo Coimbra, apontamentos de biografia e de bibliografia, escrito pelo Álvaro Ribeiro.
Tinha-o o lido e talvez o releia ainda hoje, quarenta e oito páginas em estilo límpido.
Mas o a propósito vem de uma nota, escrita na folha de guarda, ao lado do nome Leonardo Coimbra: «Leonardo Coimbra: um dos maiores pensadores de todos os tempos. Fundador do sistema filosófico intitulado creacionismo. Converteu-se à Religião Católica depois de longos anos de estudos filosóficos e científicos. Foi professor do Liceu de Gil Vicente na época de 1918-1919».
Mais: diz a nota que o livro é uma recordação do curso de Religião e Moral do ano lectivo de 1952-1953. O aluno, do 5º ano, turma B, chamava-se António José Nery de Oliveira.
Terminou tudo num alfarrabista. Recuperei-o, guardei-o, li-o, visitei-o esta tarde de inércia.
«Nunca o pensamento inquieto poderá desenhar uma figura rectilínea», escreve Álvaro Ribeiro sobre o autor de A Alegria, a Dor e a Graça. Talvez por isso os tropeções do espírito, as pernas do afecto a ensarilharem-se no intelecto.

A coincidência assombrosa

Reflexão nocturna! Quantas vezes o oculto se esconde no coincidente, assim se desconsidere o acaso e se tente ir à razão da máxima probabilidade. Pensado isto ontem, li esta manhã a resposta vinda do Aquém: «Pedro Martins parte de uma coincidência assombrosa: D. Dinis nasceu em 9 de Outubro de 1261; Álvaro Ribeiro, o filósofo desconhecido que se propõe desocultar, morre no mesmo dia, 9 de Outubro, mas 720 anos depois, em 1981. 720 anos exactos!». É um novo livro da editora Serra d'Ossa: O Céu e o Quadrante, Desocultação de Álvaro Ribeiro. É a legitimação do que aos dezanove anos intuí, abandonado pelo último dos Além's.

20.9.08

A dual negativa

É possível um filosofar de portugueses, que seja diferente só por ser oriundo dos nascidos em Portugal? Talvez não, apesar de terem uma língua comum, a fazer supor uma matriz unitária de pensamento, e já não se pode dizer que haja, a unir-nos, a Raça.
É possível um filosofar que seja sobre assuntos portugueses, que sejam diversos só por serem os que respeitam a Portugal? Talvez não, mau grado termos como Nação questões nossas e como Estado problemas que são próprios, e ainda haver quem acredite na Pátria que é una e indivisível.
Ora a questão reside precisamente no território definido por esse duplo talvez não, a dual negativa dubitativa.
É por causa da força mental da incerteza que se tem animado a razão a que se chamou de filosofia portuguesa. Escavam no modo de ser português, nessa antropologia do homem lusitano de que o espanhol é o além-fronteira, uma psicologia social que seja una e indistinta; escavam na tradição e seus arcanos os sinais de uma única antiga História da portugalidade.
É possível pois uma filosofia portuguesa. Ou melhor dito, existe, mesmo quando os portugueses não reconhecem Portugal.

15.9.08

Deus e o Diabo

O pricípio do terceiro excluído, o tertium non datur da filosofia aristotélica, tem seguramente que adaptar-se, como excepção, ao pensamento português. Escreveu Teixeira de Pascoaes «Deus e o Demónio são incompatíveis em toda a parte, excepto em Portugal». Está entendido? Não vale a pena insistir na tentativa de superar a exclusão. A filosofia portuguesa toda está contra, mesmo um anjo com asas.

14.9.08

O mirone do ajuntamento

Sabem todos os que com a filosofia portuguesa se ocupam e mais ainda os que com ela se preocupam, o que se passa.
Criei este blog para ir deixando por aqui apontamentos, leituras, notas soltas, provindas desse meu amor ao que Álvaro Ribeiro viu, e tantos outros sentiram: a possibilidade de uma filosofia portuguesa, reflexo anímico do modo de ser português. Saltito entre os nomes, os de Leonardo Coimbra, Orlando Vitorino, António Quadros, Pascoaes, José Marinho, Braz Teixeira, António Telo, muitos outros. Dalila Lello Pereira da Costa.
Apesar desta minha devoção tenho tentado ignorar o que se passa.
Tenho lido pouco, coleccionado livros para a estante, pensado quase nada, sentido sobretudo em silêncio. O blog ficou parado, asteróide morto na estratosfera, uma ideia sem substância, uma energia não corporizada.
O cansaço pressagia por vezes tempestade, tal como na Natureza quando uma súbita calmaria anuncia a chegada de uma trovoada.
Esta manhã enfrentei o que já sabia tinha acontecido. Fui à Leonardo ler e na carta aberta ao Jesué Pinharanda Gomes estava tudo. Choveu na minha alma.
Ser solitário, cada vez mais refugiado no ensimesmamento, sempre teria dificuldade em conviver com a multidão que se reuniu em torno da Nova Águia. Talvez nem queira ser mirone do ajuntamento.
Criatura a quem as lógicas de mando e domínio nada dizem, é impossível imaginar-me a filosofar a obediência ao Céu no areópago dos que querem o mando na Terra. Mesmo a ideia de dizer que filosofo é um dito que tem de vencer o pudor para me sair da boca.
Avesso à vozearia, incapaz de não me perder na algazarra da praça, lembro sim, com saudade,´a reconfortante ideia da tertúlia, o calor amigo da roda solta do café e das conversas desgarradas, não tê-las conhecido, sim por ter sido capaz de as viver, precisamente ao ler um texto do Pinharanda Gomes.
Talvez por isso, faça dó o que vejo. Ou talvez se deva olhar para tudo isto como uma das convulsões pelas quais a vida gera vida. No final, cada um ficará onde tem de ficar. Tudo menos as ilusões.
Ante isto, que fazer? Ruminar, talvez, fastios, regurgitar, sim, imprecações. Desejar um bom domingo ao Moraes Sarmento e quando chegar a casa ir lêr. Pausada e solitariamente, por nada, para que possa, enfim, ser por alguma razão.

20.8.08

O segredo

Ana de Castro Osório, que recusou casar com Camilo Pessanha, editar-lhe-ia, em 1920 a Clepsydra. Amor irrealizado, tinham-se unido pela fraternidade do sentimento, iniciados que já estavam na fraternidade universal da filiação maçónica, antiga e aceite, em que haviam encontrado a via oculta, a palavra sagrada, a cadeia da união.
Opiómano, emigrado para uma terra de exílio, Pessanha sofreria da mesma doença que Wenceslau de Moraes, o viver como um sonâmbulo num sonho alheio, numa pátria estrangeira.
Danilo Barreiros descrevê-lo-ia como «o morto-vivo», os chineses de Macau chamavam-lhe «o homem da meia vida».
No seu mais simbólico verso, o Branco e Vermelho, fez a viagem final, alucinatória, pelo território da luz. O poema inaugura-se com: «A dor, forte e imprevista/ Ferindo-me, imprevista/ De branca e de imprevista/ Foi um deslumbramento/Que me endoidou a vista/Fez-me perder a vista/ Fez-me fugir a vista/ Num doce esvaimento».
É a fenomenologia de um êxtase, a linguagem dos místicos, o dizer indizível, o segredo. Disse-o António Quadros, na Páscoa de 1988.

2.6.08

Os quadrilheiros

Talvez seja mesmo o ensimesmamento a saída única para um espírito angustiado, pesaroso pelo definhamento mental da maioria, e pelo espírito de milícia dos que se julgam os eleitos.
Numa qualquer cave de sinistras ideias, fabriqueta de petardos que arrombem as frontarias do ruminar oficial, o inferno por baixo, ou em qualquer mansarda, onde se embriague o espírito no alheamento do real, o céu como horizonte, a poética como companhia.
Portugal são hoje quadrilhas mentais que contam espingardas de erudição e se fuzilam com balas de retórica.
O pensamento pátrio começa a reduzir-se a isto: exumação e panegírico fúnebre. Não são discípulos são necrófilos; não são continuadores, são coveiros.
Não pertencer a nada, não ter grupo, nem seita, café certo ou família que nos reconheça é o que resta aos poucos que se queiram salvar dos salvadores de Portugal.
A filosofia portuguesa está nisto: os mestres pensadores deviam estar na a vala comum, onde nenhuns salteadores de sepulcros os encontrem. Vileza, ao que isto tudo chegou!

8.2.08

Leitor desconhecido

Fidelino de Figueiredo escreveu um livro estranho e assimétrico, chamado «Um coleccionador de angústias», que preâmbulo confessa dever-se-ia chamar «Agonia do Individualismo». Nesse livro apela, lembrando-o o «leitor desconhecido». Tenho-o comigo e hei-de lê-lo um dia. Seguramente um dia, tal como ele «de cor, por quartos de hotéis, de país em país».

6.1.08

Dalila, a sensibilidade pensante

Soube pela revista «on line» Leonardo que a Dalila Lello Pereira da Costa tinha publicado mais um livro, intitulado, «As Margens Sacralisados do Douro Através do Vários Cultos».
Veio pelo correio, e ei-lo, enfim, a ser lido. Comecei pelo fim, como faço por vezes com os jornais, como quem progride do já sabido para o como se soube.
A segunda parte da obra de «pristina nostalgia» é dedicada «à irmã Galiza, com saudades».
E é sobre a saudade «essa disciplina espiritual suprema» que assina um texto, tal como escreveu, em 1975 - ano impróprio para tanto - um livro, com Pinharanda Gomes.
«A saudade vence a irreversibilidade do tempo e a distância do espaço, efectua a sintese, ou mais a união do espaço e do tempo, anulando sua aparente diferença e desunião: e anulando-os finalmente como forças terrenas».
É pela força libertadora da saudade que o homem português descobriu o céu e a terra, em busca do «mito do ser e estar paradisíaco», argonauta do mundo por haver.
Lerei tudo, este livro e todos os outros.
Ama-se esta mulher pelo que é, pelo que sabe sentir e sabe fazer-nos sentir. Obrigado por ter sido como é, essa magnífica «sensibilidade pensante». Nasceu em 1918.

7.10.07

Adolescência regressiva

«Vivemos hoje um período de menoridade e de adolescência regressiva em que, predominando o intelecto passivo, as pessoas se auto-satisfazem e auto-iludem com os lugares-comuns ideológicos, com os discursos demagógicos e com as ideias convencionais de gerações que, para repudiarem um certo tipo histórico de nacionalismo, perderam a própria identidade e já não sabem quem são ou para que são, como portugueses». António Quadros o escreveu, no seu livro Portugal, Razão e Mistério.
Encontrei esta citação, não em um dos dois volumes dessa obra, mas aqui, neste blog que é dedicado ao seu pensamento. Actual o dito, como todos os suas semelhantes, neste ciclo em baixa do ser português. Não é uma questão de política, é um problema de sociedade em geral. Num país que se não reconhece como Nação e tem vergonha se ser Pátria, em que deixou de haver cidadãos, os poucos eleitores, os muitos contribuintes e todos os indiferentes, vivem aqui, como se turistas fossem, na terra multi-secular dos seus avós.

24.8.07

Setembro, em Sesimbra, a 4

Segundo li no blog Telegrapho de Hermes, citando como fonte a Revista Leonardo: «57 livros para a história da Filosofia Portuguesa é tema de uma exposição que vai estar patente, entre 4 e 22 de Setembro, na Biblioteca Municipal de Sesimbra. No último dia, realiza-se, pelas 15 horas, um colóquio sobre Rafael Monteiro e a filosofia portuguesa com participação de António Reis Marques, João Aldeia, Roque Braz de Oliveira, António Telmo, Pedro Martins e Luís Paixão. A iniciativa insere-se nas comemorações dos 150 anos de Filosofia Portuguesa». Um acontecimento a não perder.

11.8.07

As normas corporativas (2)

[continuação] «As normas corporativas não podem contrariar as disposições legais de carácter imperativo», diz o Código Civil. Mas, como dissemos, são fontes imediatas de Direito, como vem no mesmo Código, que ao acrescentar que «os usos que não forem contrários aos princípios da boa fé são juridicamente atendíveis quando a lei o determine», não se esquece de anotar que «as normas corporativas prevalecem sobre os usos».
Faz espécie que, tendo a Revolução de 25 de Abril de 1974 extinto o regime corporativo que a Constituição antes vigente, a de 1933, proclamava ser o nosso regime político, continue teimosamente no Código Civil, ostensiva e provocante, uma norma a considerar que é fonte de Direito o conjunto das «normas corporativas», que, como recordamos no último texto, são «as regras ditadas pelos organismos representativos das diferentes categorias morais, culturais, económicas ou profissionais, no domínio das suas atribuições, bem como os respectivos estatutos e regulamentos internos».
Como solver este mistério de sobrevivência jurídica e de aparente incongruência política?
Os mais práticos, aqueles que querem fazer passar por refinada teoria o que é afinal uma mera ideologia, dirão que se trata de um esquecimento do legislador, há trinta e três anos perdida a norma no olvido de quantos modificaram o sistema jurídico nacional ao sabor das conveniências mais diversas, pois que seria incongruente um Direito que, sendo do corporativismo, seria afinal o de um «fascismo», pois não é com mimos menos ásperos que o nosso corporativismo de base doutrinária eclesial tem sido tratado, apesar de os mais lúcidos analistas, como Manuel de Lucena logo à cabeça, terem mostrado quanta diferença há, entre tanta semelhança que parece existir.
Mas, e se não se tratasse de um lapso legisferante, mas de uma significativa manifestação filosófica e mais profunda, a evidenciar um lastro aglutinador típico do modo de ser português do nosso Direito? Se fosse essa uma fenda na muralha positivista do nosso sistema jurídico escrito, a abrir caminho a uma filosofia jurídica portuguesa, nossa?
É que, a ser assim, o que o Código Civil diria, enquanto carta de alforria da Pessoa face ao Estado, seria que, precisamente ao lado das leis estaduais, que se dirigem aos cidadãos e suas organizações, existiram as normas da comunidade organizada de pessoas, as corporativas, inderrogáveis como conceito, perenes como instituições. Não poderiam, isso é certo, ser anti-leis, mas seriam reduto privativo de normatividade, área inexpugnável de um mundo jurídico próprio, pelo Direito reconhecido e por ele legitimado.
E porquê? Porque dirigindo-se às categorias «económicas ou profissionais», e nisso abrangendo as empresas, os sindicatos e as associações de classe, não deixariam de fora as categorias morais e as culturais, nas quais não está o cidadão, nem o indivíduo mas sim a Pessoa, armada da sua dignidade, da sua espiritualidade, da sua alma, que não há Direito que usurpe na sua intangibilidade.
Inviolável que o é, a Pessoa, gozando dessa majestade ética típicamente da sobernia do ser, não poderia estar contra o Direito, mas sempre estaria antes do Direito: ela seria o fundamento, a razão, a única forma de legitimação de todo o Estado, de todas as leis, de todos os que vivem para as acatar e para as fazer cumprir.
Eis pois, fruto desta escavação arqueológica pelo Código Civil, um dos alicerces de uma filosofia jurídica portuguesa, a perenidade civil das «normas corporativas». Desmintam-me, que não quero estar convencido se estiver em erro!

As normas corporativas (1)

Julgam tantos que é possível ter sobre o Direito um pensamento que seja universal para todas as Nações, mau grado o Estado que as tribute, apesar do que for a Geografia, que de cada espécie humana faz um indivíduo diferenciado, da Tradição territorial que de cada cidadão faz um patriota constitucional, da Opressão que torna cada contribuinte num resistente activo.
E, no entanto, um instante de reflexão logo mostra o irrazoável de tal possibilidade, anulando-lhe a existência.
Não havendo Direito igual não pode haver sobre ele um pensamento uniforme, por vezes nem a convergência é sequer possível: assista-se a um italiano a falar num colóquio jurídico em face de uma audiência de escandinavos e conclua-se ao rir!
O discurso sobre haver ou não uma «filosofia portuguesa», estende-se ao saber se há ou não uma filosofia jurídica para Portugal. A resposta só pode ser: há, porque é.
Enquanto formos uma identidade psicológica distinguível, e ainda o somos, teremos como Nação um nome, a dos portugueses; enquanto tivermos uma sociedade civil que o Estado, vampirizando-lhe o sangue, lhe não corrompa o coração, seremos Portugal. Enquanto tivermos uma ordem, a que reconheçamos obediência legítima, que nos vença a liberdade por nos convencer da sua Justiça, teremos um Direito Português.
É sobre tudo isso que passarei a escrever.
Num país em que ainda há um Código Civil que reconhece como estando em vigor, como fontes imediatas de Direito «as normas corporativas», que seriam as de um regime corporativo deposto em 1974, mas que afinal são, diz a lei, «as regras ditadas pelos organismos representativos das diferentes categorias morais, culturais, económicas ou profissionais, no domínio das suas atribuições, bem como os respectivos estatutos e regulamentos internos», há por força este modo de ser português no campo da Justiça.
Estamos num país em que manda o Estado com suas leis, mandam as as corporações com os seus regulamentos. Só isso, que é nosso, dá para pensar. Pensemos pois!

10.8.07

António Quadros

Como antes ler do que escrever sem saber, descobri um blog dedicado a António Quadros. E nele encontrei esta magnífica frase: «O português quer viver, crescer e de um modo geral ser, mas afeiçoou-se a convicções negativistas, nomeadamente ao nível político e educativo, que o conduzem a um auto-envenenamento mental». Valeu a pena ter ido lá, encontrar a mordedura do ofídeo psicológico que me mordeu e que nem as férias conseguem curar.

22.7.07

O relativismo, essa água contaminada

O primeiro encontro entre o português Manuel Laranjeira e o espanhol Miguel de Unamuno ocorreu em Espinho. O triste médico encontrou no expansivo filósofo um «paradoxeur», prisioneiro do seu próprio relativismo e armadilhado pelas aporias da sua forma de dizer. Depois estreitou-se uma amizade que daria em espístolas, editadas pela Portugália e de que eu ainda anseio encontrar o livro para as ler.
Ao saber-se pela biografia de Don Miguel como, tendo sido deputado republicano e socialista em 1931, apoiou, entusiástico, o franquismo e a Falange, em 1936, para disso se arrepender em discurso violento no próprio ano, perguntei-me se, naquele momento do diálogo entre os dois em que ao ouvir dizer «qualquer água me serve desde que me mate a sede», Laranjeira responde que «assim um dia matará sim a sede e morrerá envenenado» já não estará contido, no ovo, o princípio de toda uma vida, toda uma trágica diferença que levará Laranjeira ao suicídio e ao olvido e Unamuno ao panteão da glória e às tubas da fama. Corria o ano de 1908. É sua a frase: «El modo de dar una vez en el clavo es dar cien veces en la herradura».

15.7.07

A perda de tempo

Vindo do Porto, aterrei em Lisboa e, esgotado de cansaço, dormi, pela segunda vez em dois dias, nove horas seguidas. Acordei com o turvo pensamento de pecado, a estranha sensação de incomum. Ainda em torpor, acudiu-me, entre o sono e sonho, ter visto, em Santa Maria da Feira um busto do Leonardo Coimbra, algumas das letras que lhe assinalam o nome caídas ou roubadas, enfim sumidas.
Não sei porque penso isto, nem sei porque estou ainda aqui, o banho por tomar, o dia por viver. Perto de minha casa um sino chama pelos que têem aquela fé. Hoje, além disso, é dia de votar, para os que têem essa esperança.
Lembrei-me foi de haver, entre a molhada desarrumada de livros que me cercam, um que o Alfredo Ribeiro dos Santos escreveu, biografando o Leonardo Coimbra. Esse opúsculo, que a Fundação Lusíada editou está prefaciado pelo Jesué Pinharanda Gomes. Fui lê-lo, por nele se conter uma frase provocatória acerca do Porto e de Lisboa e eu ter chegado a Lisboa, vindo do Porto: «No Porto, que trabalha, nem nunca nem ninguém, perde tempo. A perda de tempo é propriedade de Lisboa, que é, em si mesma, uma perda de tempo». Ora, pois, e eu a dormir, primeiro no Porto, e agora em Lisboa, perdendo tempo em todo o lado e em toda a parte!

8.7.07

Pensar Portugal

A filosofia portuguesa pode ser o filosofar dos portugueses e, a ser isso, é pouco, por não sermos muitos. A filosofia portuguesa pode ser o pensar Portugal e, se for assim, já é um começo esperançoso, porque a Nação tem de renascer pelo espírito, velha que está, após oito séculos de esgotado ser. Mas a filosofia portuguesa tem sido o modo de reiterar temas que se julgam nossos e de mais ninguém, como se um povo de marinheiros pudesse ter uma vida própria que não fosse o saber viver alheadamente.
Ontem bateram-me à porta dois locais que são tertúlias do espírito desse pensar português sentindo Portugal: o maranos, e o leonardo. Há mais, mais haverá.

28.1.07

O labirinto

O acaso fez-nos sentar lado a lado. Prometeu-me que me levaria a conhecer a Dalila Lello Pereira da Costa, soube por ele que tinham acabado os «Teoremas de Filosofia». Numa agenda que editou comemorativa do Fernando Pessoa, descobri que há dias de um qualquer ano longínquo nasceu o Vergílio Ferreira. Não sabia que era ele quem produzia o Borda de Água. Quando falou do «Sampaio Bruno» veio-me ao pensamento que hoje ainda, já nem sei onde, vi uma menção à «Ideia de Deus». Quase no fim do jantar veio a frase «conhecer é ser». Já nem sei qual de nós a disse ou a tinha pensado. Acho que a sentem todos os que pensam com o coração. Na osmose entre mim e o outro dá-se o sabê-lo como se fosse eu. Ao viajar pelo labirinto alheio reconheço-me no absurdo da minha confusão.

13.1.07

A partir do antes

Há, a ilustrar a exposição evocativa do António Gedeão, que está na Biblioteca Nacional, uma entrevista com a sua pessoa, nos últimos tempos em que viveu. Nela, o autor dos «Poemas Póstumos» recorda como tudo foi criado a partir do antes e como assim é possível, sempre recuando no tempo, chegar ao momento em que se retira a terra do sistema solar e o sol da própria galáctica. Claro que, seguindo sempre para trás, em direcção à origem, a dúvida surge, inevitável e eis aqui a grandeza do génio, neste momento agónico do anterior do princípio. Gedeão: «claro que eu não sou capaz de perguntar quem criou isto tudo. Por isso, não pergunto». Repito para os leitores distraídos: não é o que não sou capaz de responder, como diria, sem dar conta da sua arrogância, qualquer vulgar, é ter a grandeza de não se ser capaz de perguntar. Confesso que ao ouvir isto, assim tão breve e tão lúcido, de um homem à beira do fim, me vieram as lágrimas aos olhos, talvez por andar enfraquecido. Desculpem.

7.1.07

Ânsia de fim

O Livro de Areia de Jorge Luis Borges é a alusão em conto a um livro monstruoso, infinito, em que a cada página sucede sempre outra página, um livro sem princípio e sem fim. Trouxe-lho um homem que exalava melancolia. As folhas estão numeradas de modo arbitrário. Metáfora da vida, a obra corrompe a realidade que é viver, tornando-a como que infame. Condenado ao eterno, o precário tem sempre uma ânsia de fim.