Talvez porque fomos educados no cinismo da dialética, não a grandiosa e monumental hegeliana, catedral escorada que é a celebração da sua própria legitimidade, edificação vaidosa de verdades que o são por si mesmas e pela sua aparência de coerência intrínseca, mas pela outra, a cínica, utilitária, a do relativismo histórico e da luta dos contrários, que se não anulam mas da mentira fazem verosimilhança, e dão fundamento à carnificina e da pessoa fazem indivíduo e deste cidadão, por isso dizia caímos nesta anemia mental em que qualquer rasca propaganda nos seduz, quaisquer causas precárias nos mobilizam e demos nisto amibas tele-espectadoras e de tablóides folheantes, no mais zapantes internautas de um cosmos mental vazio, clicantes ratos entre vivas e olás e gosto disto e cito que citaste o que foi citado.
Mas sucedeu que o meu incerto ser em reconstrução encontrou e eu li e sublinho e agora mastigo-o com dentes e o regurgito, um extraordinário livro que Maria Almira Soares escreveu sobre um menino que assinava Vergílio António de Oliveira Ferreira. E que foi depois um «moinho de ensinar», e como o Mário do Cântico Final serviu casas «de saber manufacturado, burocrático», e sofreu «ferozes meninos do liceu» e a «tocante suficiente dos colegas, sérios, correctos, cronometrados» e tudo e tudo por instantes de glória e hossana porque há o milagre da excepção. E escreveu admiravelmente.
E nesse livro, que me tem feito companhia desde ontem, eu li o salmo que é o da redenção de uma vida e uma profissão de fé na ressurreição diária pelo amanhecer: «Descobrir a contradição do que não é contraditório que é afinal a vida com a sua exactidão, é ter realizado o maior esforço de compreender. Mas realizá-lo é não ser homem é morrer. Por isso eu morro vivendo».