As circunstâncias adversas, a mobilidade reduzida. O livro imenso, pesado, 1029 páginas, letra miúda, espaço apertado entre as linhas, como objecto de difícil manuseio. Mas há muito que cortejava.
Doeram-me as gralhas, e dei logo com umas quantas, inadmissíveis num livro da Imprensa Nacional. É o Pensamento Português Contemporâneo, 1820-2010 de "Miguel Real", o pseudónimo literário de Luís Martins. Tiraram-se oitocentos exemplares, o que mostra que há tão pouca gente interessada no pensamento português, ainda que contemporâneo.
Comecei por capítulos quase finais, o dedicado a António Quadros e a Dalila Lello Pereira da Costa, esta «autêntico mito vivo da filosofia portuguesa», quase desconhecida salvo por um pequeníssimo círculo, aquele com obra «envolvida por artigos de panegirismo de companheiros e amigos das lides filosóficas», «remetida para o limbo do "folclore ideológico"».
Miguel Real organiza a sua obra - que compila um seminário que leccionou na Faculdade de Letras de Lisboa - antecedendo-a de uma apresentação. Categoriza o mundo do pensamento entre o «providencialismo messiânico da Igreja e do Estado» e «o racionalismo e empirismo europeus» e quanto às modernidades que deram ao todo a dinâmica da singularidade separa os vanguardismos - todos os movimentos culturais, políticos e sociais do século XX de alto valor prosélito, providos de instituições e órgãos, cujo objectivo máximo seja, não a "reforma de mentalidades" (...) mas a tomada política do aparelho de Estado - dos modernismos - - afinal «todos os movimentos culturais portugueses, de baixo valor prosélito, de índice grupal, não raro sobrevivendo isolados, despercebidos ou repugnados pela mentalidade dominante, apenas providos de órgão informativo, cujo objectivo máximo consiste na expressão individual estética e/ou na "reforma das mentalidades" por via da difusão de novos conhecimentos e novas atitudes culturais».
Livro interessante, compêndio, há, porém, a desdentá-lo o feio das generalizações. Falando da Universidade refere-a como «casa do saber transformado pelos positivistas da I República e os professores acéfalos do Estado Novo em casa de elite decepada de inteligência». Ora houve, mesmo com o Estado Novo e no Estado Novo, gente com inteligência, saber e cultura de excelência, pelo que esta indecência qualificativa é cientificamente errada e culturalmente vulgar. Tem apenas a vantagem de ser "popularucha" e como tal levar o autor à glória fácil. Não havia necessidade. Já nem cito o que diz da Igreja e do Estado, porque se intui do excerto. Mas entristeceu-me ler o que li.
As circunstâncias eram adversas, eu sei, trazerem-me o livro foi um carinho, começar a lê-lo foi um esforço. Mas confesso que o tomei nas mãos com respeito e apreço. Nada no que nele é magnífico fica em causa. E sobretudo tudo o que nele há de útil fica salvo. Vou tentar lê-lo todo apesar de imenso. Mas é um repto.