17.7.23

A Paixão de António Quadros por Fernando P.


Por se tratar de texto que será publicado na revista Nova Águia não poderia cometer a indelicadeza de a divulgar aqui na íntegra. Ficam apenas três excertos da conferência, intitulada A Paixão de António Quadros por Fernando P., que proferi, tendo como tema o envolvimento de António Quadros com a vida e obra de Fernando Pessoa, que esteve na génese de tantos dos seus escritos de que se revelou, por último, num inédito ficcional, que transcrevi a partir do manuscrito e prefaciei e acaba de ser editado pela Fundação sua homónima. Foi a minha forma de homenagear o centenário do seu nascimento que este ano se comemora.

«A ideia surgiu-me após ter transcrito o manuscrito do romance A Paixão de Fernando P., um inédito de António Quadros, agora editado, e a que chamei, no texto prefacial, romance espelho, porquanto é escrito em decalque à complexa relação amorosa entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz: situar o interesse do autor por aquele que se tornou a personagem da sua ficção e nomeadamente por aquela estranha forma de quase amar que se estabeleceu entre dois seres tão antagónicos quanto impossivelmente complementares.

Que se tratava de um longo e persistente interesse de Quadros por Pessoa percebi-o ante uma frase daquele proferida na entrevista que concedeu a Antónia de Sousa, pouco tempo antes de falecer, que «[…] às vezes chego a pensar que o Fernando Pessoa é uma presença de que não me posso livrar», afirmação que levei a pórtico daquele prefácio.

Já quanto a Ofélia Queirós e à relação amorosa com Fernando Pessoa, a percepção intensa só nos surge revelada por António Quadros mais tardiamente, no livro que em 1960 dedicou à vida e obra do poeta, reiterando o tema na edição praticamente idêntica de 1968, na «praticamente outra», vinda a lume em 1978 e, já com substancialmente diverso ângulo e maior amplitude, na variante que publicaria em 1984, intitulada Fernando Pessoa, Vida, Personalidade e Génio.

Para observar o que vos trago, situei-me, como início de jornada, em 1947. António Quadros tem então 24 anos e inicia-se no domínio ensaístico literário com o livro Modernos de Ontem e de Hoje, publicado pela Portugália, no qual analisa a personalidade literária pessoana à luz das Cartas a Armando Cortes-Rodrigues, livro este publicado, em primeira edição, em 1944 pela editora Confluência, com um prefácio e notas de Joel Serrão.

É o ano da licenciatura de Quadros em Histórico-Filosóficas. Considera a obra uma ousadia dos seus vinte anos, a estrear-se da pior maneira possível, ao escrever sobre Literatura. É o ano do seu casamento com Claudina Pó, que ocorre a 8 de Dezembro.

Não se pode dizer que o pensamento de Fernando Pessoa, subjacente a essa sua escrita inicial, lhe seja desconhecido, apenas que não surge ainda com a desenvoltura que atingiria em 1959 e se condensaria em 1960, com sucessivas modificações referidas em 1968, 1978 e pujantemente em 1984, nesse estudo sistematizado sobre a vida e obra de Pessoa, como veremos.

O Fernando Pessoa que naquela primeira data mais longínqua lhe chamou à atenção foi o que evidenciava uma contradição insolúvel entre «o lírico que vê, ouve, observa – sempre pensando – e o pensador que vê, ouve, observa – sempre sentindo.

Contradição entre um homem que olha constantemente para si próprio, que, procurando descobrir as causas, observa os defeitos, observa o que de mais íntimo há dentro de si, se tortura incessantemente, e um homem que sente e, quando sente, não pode deixar de exteriorizar os seus sentimentos – a sua poesia».

É o que, com aguda perspectiva, Quadros qualifica como a «contradição de Fernando Pessoa e Fernando Pessoa», o ser sensível que pensa, o pensador que sente.

Há, por outro lado, nesse ensaio de 1944, a percepção do inevitável tema dos heterónimos, perspectivado numa dupla vertente.

A primeira, para sublinhar, com recurso às palavras do próprio Pessoa, quanto há de sério nesse desdobramento do ser, quanto dos seus principais heterónimos [Caeiro, Reis, Campos] ele havia posto «um conceito de vida, diverso em todos os três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir».

A outra, ao tomar o símbolo, consciente ou inconsciente, imanente à própria heteronímia, afinal o da «frágil consistência da pessoa humana, que pratica os actos mais contraditórios, que tem as manifestações mais opostas, que não pára de evoluir, apresentando sucessivamente aspectos diferentes».

Enfim, fazendo-se eco de uma problemática ainda viva nesse tempo – que o dito neo-realismo trouxera para a agenda e faria perdurar – Quadros, considerando que «o artista não deve fazer intervir em excesso na sua obra os seus ideais humanos» analisa a escrita do poeta que criou Álvaro de Campos à luz do conceito da Arte pela Arte, em oposição à função social do artista. Ante essa dicotomia, Pessoa teria encontrado, segundo ele, o meio-termo, «porque consegue ser ao mesmo tempo, português, humano, artista, pensador, poeta, sem nunca deixar de ser ele próprio».»

[...]

Enfim, aproximamo-nos do tema: António Quadros e a relação amorosa de Fernando Nogueira Pessoa e Ofélia Maria Queiroz Soares, ele tradutor e correspondente comercial, ela circunscritamente dactilógrafa.

Na obra de Quadros publicada em livro sobre a vida e obra de Pessoa, o tópico surge-nos, expresso e detalhado, primeiro em 1960, depois nas versões que foi sucessivamente publicando até 1984, no livro dedicado à vida e obra de Pessoa: tratou-se do que na primeira edição ressalvou ser, não uma biografia e uma interpretação feita «de fora», antes «um trabalho de selecção, escolha, sistematização [dos] múltiplos aspectos de uma vida e de uma obra, desde o ponto de vista da sua própria subjectividade».

Sedo inviável comparar todas as versões, tome-se como referência o texto inicial de 1960 [páginas 33 a 56], publicado no mesmo ano em que Quadros editou o seu livro de contos Anjo Branco, Anjo Negro, e, por contraponto, a versão final de 1984 [páginas 137 a 189].

No primeiro, intitulado apenas Fernando Pessoa, e publicado pela Arcádia, na colecção A Obra e o Homem, emerge, desde logo, a prevenção quanto às interpretações psicanalíticas dessa expressão amorosa e, afinal, da vida sentimental de Pessoa, seja o recurso à teoria freudiana dos complexos e da sublimação dos recalcamentos, socorrendo-se António Quadros da própria apreciação paradoxal que o poeta fez do freudismo em carta a João Gaspar Simões em que parecia, afinal, apreciar precisamente o clínico de Viena no ponto em que pode ser relevante convocá-lo: «o freudismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo», escreveu Pessoa nessa missiva de 11 de Dezembro de 1931, ali longamente citada.

Entra então na narrativa de Quadros, a menção ao facto de o amor sexual não avultar na obra de Fernando Pessoa, à excepção de dois dos seus poemas ingleses, Antinous e Epithalamium, que o seu autor considerou serem «nitidamente obscenos», sem que, aliás, suponho, o sejam.

Não que, previne Quadros por uma pergunta que é resposta, que não esteja «Fernando Pessoa – como homem – consciente da realidade feminina, da realidade física, carnal», sim, porque a mulher que ele procura no que a poesia reflecte é «não o corpo, mas a alma distante», afinal «a visão primordial da Mulher essencial, paradigmática, simbólica», seja «o vago anseio, o mesmo sonho da Mulher antiga e linda, da Rainha outrora amada».

É, após esta contextualização, que António Quadros nos apresenta Ofélia Queiroz e as cartas de amor entre «aquela rapariga burguesa e lisboeta» e o poeta, através das quais, considera Quadros, «assistimos a um penoso drama: o drama da impossibilidade de uma substancial união, acrescido da impossibilidade de autêntica comunicação».

A primeira carta data de 1 de Março de 1920. Na altura em que Quadros escreve a sua obra na versão inicial de 1960 não estava ainda publicada na íntegra toda a correspondência.

[...]


«Enfim, o livro quase-póstumo, Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, compilação de conferências, publicado em 1992, um ano antes de falecer, no qual insere [páginas 85-111] o que havia sido uma conferência lida no Teatro Olímpico em Roma a 28 de Maio de 1986 e que ampliou, datando do ano 1991 essa versão mais desenvolvida.

Causa espanto, diga-se, que António Quadros não tenha aproveitado tudo quanto já escrevera para assim resolver o tema de uma conferência para italianos, reunindo excertos dos seus livros e artigos dedicados ao tema pessoano. Não: dando mostras de uma vitalidade notável, trouxe matéria nova, aquilo consta deste artigo.

São estes os temas que ali compendia. Pessoa como pensador gnóstico e o Cavaleiro-Monge, Thanatos e Eros ou de Abdicação a Gládio, a realidade imanente e a demanda de uma realidade transcendente, ou seja, os três estados de um itinerário, Pessoa e o corpus mítico-profético português e, enfim, de Camões e Vieira a Pessoa, uma tradição vivaz.

Não será fácil sumariar a riqueza inovadora de perspectivas que resultam desta reflexão, fruto de um pensamento amadurecido de quem, à data, estava em vias de nos deixar.

Tendo começado por referenciar que este percurso tinha como seu ponto de partida o meu envolvimento na transcrição do romance A Paixão de Fernando P. compreender-se-á que me detenha no segundo tópico de entre os elencados, apesar de, na economia do ensaio ser o menos extenso, não ficando aqui sequer um breve apontamento quanto aos demais.

Não porque o aí escrito tenha directamente a ver com a relação sentimental de Pessoa com Ofélia Queiroz, mas porque é por aí, pela grandeza do que ali podemos ler, [nas palavras de Quadros «a experiência perturbante do transcendente», a dialética do animus e do anima», «a cisão dilacerante com que se encontrou ao tomar consciência do seu Si conflitual e praticar constantemente essa intra-análise psíquica»], é assim que se entende definitivamente a impossibilidade em Fernando Pessoa da vulgaridade em que essa relação sentimental com Ofélia, afinal, se traduzia.

É, de facto, no segmento a que chamou Thanatos e Eros ou de Abdicação a Gládio que Quadros aborda a vertente íntima de Pessoa, logo a partir de um fragmento que se supõe ser de 1910, em que o poeta confessa a sua passividade, o seu espírito hesitante, a incapacidade para pensamentos definitivos.

Só que António Quadros vai mais longe e, reconhecendo que uma parte da escrita pessoana ortónima «nos aparece de facto como profundamente ensimesmada, registo de uma desoladora solidão individual, documento tocante de uma sentimentalidade frustrada, projecção de uma incerteza angustiada, às vezes desesperada quanto à vida de relação e até à vida de pensamento», conclui que «a nota mais forte que conseguiu erguer e nos legou é dinâmica, interventora, frequentemente polémica e criacionista».

É no fundo a dialética aristotélica, que Álvaro Ribeiro retomaria, do conflito entre o intelecto activo e o intelecto passivo, variante do conflito entre o masculino e o feminino, o Amor e a Morte, Eros e Thanatos.

É pela auto-catarse dos heterónimos, constata Quadros, que essa tensão dialética se resolve em Pessoa, o que ele ilustra com a comparação de dois poemas antagónicos, escritos por Fernando Pessoa no mesmo ano de 1913, um, auto-sacrificial, de anseio de reintegração, o soneto intitulado Abdicação - «Toma-me, ó Noite Eterna, nos teus braços/E chama-me teu filho…Eu sou um Rei/Que voluntariamente abandonei,/O meu trono de sonhos e cansaços» - e um outro, expressão do génio criador, Gládio - «Deu-me Deus o seu Gládio, porque eu faça/A Sua santa guerra./Sagrou-me seu em génio e em desgraça/Nas horas em que um frio vento passa/Por sobre a fria terra».

Tanto mais haveria para dizer, em extensão e profundidade. Isto foi o que eu consegui».