24.3.12

A noite cega

Haverá uma filosofia portuguesa, no sentido próprio do termo, em que a etimologia, que nasceu de sermos tema e do nosso modo, resista à incaracterística contemporaneidade e seu sem sentido? Não estarão perdidos, no desorientado cruzamento, os marcos miliários da caminhada histórica desta Nação em interregno? Encontrar-se-ão, na penumbra da indiferença, os arcanos da Pátria, de entre os humilhantes sobejos, desbotados, de memórias desusadas? 
Que Quinto Império terá restado quando estamos aquém do espírito de que floresceu o Condado Portucalense? Que viagens de argonautas, se regressou deserta a Nau da Índia e em festim se foram as especiarias e cabotamos hoje na jangada do naufrágio, remando em noite cega?
Hipotecados até à raiz do pensamento, só no exílio mental se encontrará o alvorecer do que é nosso, sendo a essência do nosso ser.
Haverá um Portugal que filosofe para que resista a sua antiguidade?

P. S. O quadro é de Margarida Cepêda.

2.3.12

Incorpórea, a Alma viajou

Não tenho no lugar onde me encontro nenhum dos seus livros mas apenas a memória desses livros. Não consigo, diminuído pelo cansaço, reconstituir o sentir anímico que essa escrita em mim causa, aquele ligeiro roçar de asas que é uma carícia pela alma e um desabar do precário castelo de cartas da ilusória Razão. Sim o abatimento do corpo e com ele o silêncio e o florir da Criação que nela foi poética e mística e sagrado. 
Dalila Lelo da Costa anulou todas as diferenças entre os mundos em todos eles surpreendendo uma só realidade que pelo desamparo do pensamento não conseguia alcançar-se. Biografou-se pelos êxtases, situou-se num mundo cuja corografia eram os marcos miliários dos passos peregrinos. Foi a voz profética, a alma lusíada. Escreveu indistintamente sobre o invulgar e o comum.
 Não admira que uma tal excepecionalidade tenha sido esquecida porque é a forma de muitos irracionais cultores de alegado racionalismo condenarem à morte os que escapam ao paradigma das suas certezas catedráticas.
Ímpar mulher, não teve escola, foi escola, sem aulas, sem programa, puro exemplo. A religiosidade, mais do que vivência, nela foi ser. O seu Deus é um Deus familiar, o seu culto é Mariano, a sua teologia a do Espírito Santo, incorpórea, indizível.
Nasceu no Porto em 1918 e no Porto morreu. Li há pouco a notícia, o coração pesaroso.