28.5.12

Um coleccionador de angústias

Tão esquecido, desprezado mesmo, à esquerda por ter integrado o governo de Sidónio Pais, à direita pelo seu liberalismo. Em 1944, publicou um livro corajoso a que chamou Cultura Intervalar. Encontrei-o, amarelecido pelo tempo, levei-o comigo este fim-de-semana sem sonhar o que me esperaria ao lê-lo.
Eis ali a sabedoria mansa, sem erudição para convocar autoridade e exibir saber, sem rancor face a todos os outros que assim não pensem.
São textos na aparência dispersos, na realidade unidos pelo fio condutor de um só pensamento, a noção da precariedade do seu tempo, de intervalo entre o mundo de ontem - e vou buscar a frase ao titulo de um livro de Stefan Zweig cujo drama ele pressente e acompanha como o da ruína de um valor ante a consciência da sua vulgarização - e o que sairia da guerra então na sua agonia, se ainda sem vencedor indiscutível pelo menos sem desenho futuro para o novo mundo que se anunciaria após o caos.
Como se uma «arquitectura de emendas da vida já vivida», há nesse opúsculo a melancolia de um pensamento sentido, aí a sua preciosidade. E a noção da relatividade do mundo, a daqueles que não fazem da duração da vida humana o egoísmo «a medida de todas as coisas».
Tenho dele não sei quantos livros. Quando, esgotada a leitura, a terminar, juntar na estante este livro aos que já chegaram e dormitam como sonolentos pombos aguardar o clarear, irei conferir os que me faltam. E tentar achá-los. «Nestes anos de perplexidade crítica deu-se uma reabilitação de ideias marginais», escreveu. Talvez aí nos tenhamos encontrado. Eu e a sua esquecida obra, a sua ignorada pessoa.
Exilado, sabe-se dela mais no Brasil e em Espanha do que na sua Pátria.

24.5.12

Maquiavel: a fantasia do pobre (3)

Eis mais um excerto do que escrevi como apresentação a O Príncipe de Maquiavel e que a Editorial Presença teve a gentileza de editar como complemento de leitura à tradução feita do italiano daquela ainda hoje controversa obra.


«Eis pois, em 1513, Maquiavel no Albergaccio, a pequena propriedade a que se acolhe, em busca de sustento e descanso. Naquele tempo era um lugar isolado.
Numa carta a Francesco Vettori, escrita no dia 10 de Dezembro, descreve o seu dia-a-dia, entre a mediocridade de uma vida de campónio e o convívio nocturno com os grandes, via onírica para aplacar a dolente saudade do que foi. Os dias são duros, entre a bruta Natureza e os rudes homens, um intervalo de cultura clássica como alimento para o seu espírito e coração, a dar breve alento a uma jornada de vulgaridade terrena. Segundo as suas palavras:
«Levanto-me de manhã com o sol e vou a um meu bosque, que mandei cortar, onde fico duas horas a examinar o trabalho do dia anterior e a passar o tempo com aqueles lenhadores que têm sempre qualquer questão [«sciagura»] entre si ou com os vizinhos. (…) Saindo do bosque, vou a uma fonte e, daqui, à minha armadilha para tordos. Levo um livro comigo, ou Dante ou Petrarca, ou um desses poetas menores, Tíbullo, Ovidio e semelhantes; leio aquelas suas amorosas paixões, e aqueles seus amores lembram-me os meus; deleito-me algum tempo nestes pensamentos. Depois, vou pela estrada até à hospedaria; falo com os que passam, pergunto notícias das suas terras, ouço muitas coisas e noto vários gostos e fantasias dos homens. Enquanto isso, chega a hora do almoço, quando com a minha família [«brigata»] como aqueles alimentos que esta pobre vila e o meu pequeníssimo património comportam. Terminado o almoço, retorno à hospedaria; aqui, geralmente, estão o estalajadeiro, um açougueiro, um moleiro e dois padeiros. Com estes avilto-me[1] o dia todo jogando cricca, trichtach, e, depois, daí nas cem mil contendas e infinitos acintes com palavras injuriosas; a maioria das vezes disputa-se uma insignificância e, contudo, somos ouvidos gritar em São Casciano. Assim, envolvido entre estes piolhos, cubro o cérebro de bolor e desabafo a malignidade da minha sorte (…)».[2]
Mas é com a aproximação da noite que Maquiavel se transfigura, regressado a casa, entrando nesse universo privado como se numa figuração teatral da tragédia do passado perdido e o drama do almejado futuro. Foge do presente demasiado vulgar, penosamente vil, tem agora os Antigos por companhia, recebe-os condignamente, vestido a preceito para o elevado serão convivial. Isolado da pobreza do real, a alma do Secretário transmigra-se para os seus interlocutores imaginários. Explica-o na carta a Vettori:
«Chegada a noite, retorno a casa e entro no meu escritório; à porta, dispo a roupa quotidiana, cheia de barro e lodo, visto roupas dignas de rei e da corte e, vestido assim condignamente, penetro nas antigas cortes dos homens do passado onde, por eles recebido amavelmente, me nutro daquele alimento que é só meu e para o qual nasci; não me envergonho ao falar com eles e perguntar-lhes das razões das suas acções. Eles, por humanidade, respondem-me e não sinto durante quatro horas qualquer tédio, esqueço todas as aflições, não temo a pobreza, não me amedronta a morte: transfiro-me inteiramente para eles».
É este o cenário em que nasceu o livro de que curamos aqui, uma obra que, nas suas próprias palavras, é um trabalho de «fantasia»:
«E, porque Dante disse não haver ciência sem que seja retido o que foi apreendido, eu anotei aquilo de que, por sua [na leitura nocturna dos antigos] conversação, fiz capital, e compus um opúsculo De Principatibus, onde aprofundo quanto posso as cogitações sobre este assunto, discutindo o que é principado, de que espécies são, como são adquiridos, como se mantêm, porque se perdem. Se alguma vez vos agradou alguma fantasia minha, esta não vos deveria desagradar; e um príncipe, principalmente um príncipe novo, deveria aceitar esse trabalho: por isso eu o dedico à Magnificência de Giuliano»[3].
Nesta missiva está contida o gérmen de O Príncipe.
Afastado da vida pública, resta-lhe um único fio que o prende ao poder, no caso a correspondência com o seu amigo. Através dela, a título privado e sem a certeza de que o ouçam sequer, vai teorizando sobre o que aprendera pela experiência e confrontara com o que, pacientemente, estudara.
A Niccolò Machiavelli, ainda que como ilusão, volta o «gustare la dolcezza del dominare». A História do mando, com o seu cortejo de sensações, é a sua companheira nocturna.
Retirado para a rusticidade quotidiana, sobrevivendo pelo negócio rural, escreve então o essencial do texto que viria a ser O Príncipe.
Retornado a Florença, a 3 de Fevereiro de 1514, é um outro homem, moldado pelo sofrimento e pelo que pudera observar do comportamento humano, o dos humildes e o dos poderosos.
Frequenta então a tertúlia literária, artística, filosófica e política que se reúne no «Orti Oricellari», um jardim onde se congrega a vida intelectual da cidade.[4]
Redigirá então sucessivamente[5] o essencial da sua obra: o poema auto-biográfico Asino, os Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio[6], a peça teatral La Mandragola, a novela Belfagor, o Discorso o dialogo intorno alla nostra lingua¸ o Discorso sopra il riformare lo stato di Firenze, o Dell’arte della guerra, a Vita di Castruccio Castracani, o Sommario delle cose della cita di Lucca, a história de Florença a que chamou Istorie fiorentine e, em 1525, dois anos antes de morrer, uma nova composição teatral, Clizia.
O comum leitor que, como se fosse um dos seus biógrafos, o ficcione em ambientes palacianos, o requinte da corte a adoçar-lhe a vida, a glória e a fama a acicatar-lhe a imaginação criadora, não imagina que esta obra tenha sido gerada no concreto ambiente em que surgiu, nem que, produzida esta, o seu autor, retornado a Florença, vivesse um quotidiano de vulgaridade, entre a loja de Donato Del Corno e o lupanar de uma tal Riccia que, a troco de meia dúzia de conselhos para a sua aventurosa vida, o premiava com uns fugazes beijos.
Escrevendo, a 4 de Fevereiro de 1514, a Francesco Vettori, desabafa: «Magnífico orador, veja o diabo onde me encontro».
Tentando encontrar trabalho, supõe que será chamado a colaborar na organização da milícia Ordinanza fiorentina, que havia sido criada em 1504 sob o seu impulso, e abolida em 1512, mas é uma esperança vã.
Sente-se na piolheira, sem encontrar homem algum que se recorde dos serviços que prestara à cidade, «o che creda io possa essere buono a nulla». Imagina-se a ter de ir ensinar na escola primária, para poder encontrar sustento para si e para os seus; num lamento dorido remata: que a sua «brigada» [assim se refere sempre à família] «faça de conta que morri», pois acha que só lhes dá despesa «sendo avesso a gastos e nada podendo fazer sem gastar».
O final do ano aproxima-se e com ele uma nova ilusão. Os acontecimentos políticos precipitam-se. Luís XII de França não esconde o seu propósito de invadir Milão e o Papado hesita quanto à melhor posição a assumir e manda perguntá-lo a Maquiavel, através de Vettori. Animado com a importância, o Secretário redige uma longa resposta, que reiterará numa segunda carta. Nela desvaloriza a opção pela neutralidade, que era uma das que se colocavam à Cúria Romana, ante uma dominação francesa da Lombardia. Expressando uma linha de pensamento que era, afinal, a de O Príncipe [21,4], Maquiavel escreve: «parece-me que o ser neutral entre dois que se combatem não é outra coisa senão procurar ser odiado e desprezado» por ambos.
A carta faz nascer junto dos círculos do Papa a ideia de que Maquiavel pode estar em vias de retornar, conquistada, enfim, a confiança dos de ‘ Medici. No dia 15 de Fevereiro de 1514 o secretário pontifício Pietro Ardinghelli escreve a Giuliano de ‘ Medici, perguntando-lhe, «molto secretamente», se tinha contratado os serviços de Niccolò Macchiavelli, pois o conselho de Sua Senhoria Reverendíssima, fazendo-se eco do pensar oficial de Sua Santidade, era «a non si impacciare com Niccolò».
Morre a última oportunidade de encontrar aceitação no único mundo em que sabe viver. Escrevendo um ano depois, em Fevereiro de 1515, ao seu sobrinho Giovanni Vernacci, expressa a sua profunda amargura: «tornei-me inútil, a mim, aos meus parentes e amigos, porque assim o quis a minha dolorosa sorte».
É neste estado de alma, a auto-estima no seu mais baixo escalão, que escreve o poema auto-biográfico, aliás incompleto, Asino. Inspira-se no Burro de Ouro, de Apuleio, mas o texto ganha aqui uma natureza de monólogo lamentoso de auto-comiseração, em que o único refrigério é a lírica exaltada do amor pela pastora, em que muitos dos exegetas da obra literária de Maquiavel encontram uma reminiscência do seu enamoramento pela vizinha no seu retiro bucólico, sonhando-a «nel letto come suo amante o suo marito io fosse» [IV, 51].
Através desta composição entende-se quão defectivo é o ser humano, que indefeso é o homem, o único animal que nasce chorando e, ao mesmo tempo, ridiculamente, quanto se julga criado à semelhança de Deus, mas dele esquecido, acaba sendo, pelo confuso temor, pela maior raiva, o mais infeliz de entre todos os animais.
Regressado à cidade de Florença, os treze anos que Maquiavel aí viverá serão menos atribulados que os quarenta e cinco já vividos: aos sentimentos tónicos da euforia e da desilusão segue-se o morno conformismo e o frio cinismo com que olha, enfim, para o comum humano e para os seus príncipes.
Atrás de si ficava uma vida agitada numa Itália turbulenta onde, no dizer do nosso Padre António Vieira, «tudo é confusão e discurso; a Itália tão dividida em Estados com a Holanda em cidades: tudo cabeças, sem cabeça nem união»[7].
Nascera pobre e pobre estava. Teria pela frente sete anos de espera, a cidade de si desinteressada.
Maquiavel nascera em 1469 em Florença. Nesse ano Lorenzo de ‘Medici, «O Magnífico», torna-se senhor da cidade.
Carlos VIII de França invade entretanto a Itália e Piero de ‘Medici é obrigado a conceder-lhe o domínio das principais fortificações que defendem a cidade. A revolta da população ante o invasor e a cedência do poder levam à sua fuga.
A 17 de Novembro os franceses entram em Florença, ocupando-a. Retiram e com a sua saída surge o caos e com ele ascende Gerolamo Savonarola, um frade dominicano de Ferrara que, «profeta dos desesperados», consegue incendiar as paixões com a sua cruzada pela purga dos costumes e contra a mundanidade do luxo e do vício, por um fundamentalismo moral que leva a que assuma o controlo do poder, com largo apoio popular, através de um sistema de ditadura republicana popular teocrática: uma insólita República de Cristo, um governo de hierarquia angélica, em plena Toscânia, provocando o poder papal em Roma, a Lei de Cristo a única reconhecida, a Fogueira das Vaidades a queimar os símbolos da riqueza pagã e da degradação dos costumes.
Menos de quatro anos depois, a 23 de Maio de 1498, é julgado por heresia e condenado à morte por enforcamento e pela fogueira. Uma das suas analogias aplicava-se-lhe: o mundo é feito como uma cebola, em que cada círculo conserva outro.
Maquiavel tem, entretanto, vinte e nove anos e, sem que o saiba, viveu já metade da vida que lhe caberá viver.
Os seus biógrafos mais ilustrados falam mesmo de uma pré-história de Maquiavel, respeitante a este período, suspeitando que ele possa ter feito parte dos apoiantes do frade[8] a quem chama, num seu escrito, um «profeta desarmado».
Curiosamente, o fim da vida de Savonarola coincide com o início da vida pública de Maquiavel, que é nomeado, a 28 de Maio de 1498, para o cargo de Secretário da Segunda Chancelaria, na qual se tratam assuntos internos e militares e também dos negócios exteriores.
Toda a sua vida oficial se consome, ao serviço desse seu cargo, em deslocações ao exterior. Como escreveu um dos seus biógrafos, Maquiavel passou metade da vida de cavalo, a galope.
O poder vai sendo sucessivamente ocupado. Em 1499 o novo rei de França, Luís XII, alia-se com Veneza, com o Papa e com Florença contra Ludovico, «il Moro». Cesar Borgia («Il Valentino») inicia a construção do seu domínio pessoal. Pelo Tratado de Granada o sul da Itália é repartido entre os franceses e os espanhóis.
Maquiavel inicia uma intensa actividade diplomática, ocupando-se do problema da reconquista de Pisa que os franceses não haviam restituído a Florença. Escreve o Discorso fatto allo Magistrato dei Dieci sopra le cose di Pisa, um relatório diplomático de missão. No ano seguinte está em França, recebido na corte de Luís XII, por causa da rebelião das tropas francesas em Pisa.
1501 é o ano do seu casamento com Marietta di Luigi Corsini, que lhe dá seis filhos. No ano seguinte, acompanhado do bispo Soderini, irmão do gonfaloniere, encontra-se com Cesare Borgia, filho do Papa Alexandre VI, para aquilatar das intenções deste quanto a constituir um forte Estado no centro da Itália.
Em 1504, com o armistício de Leão, Nápoles passa para as mãos da Espanha. Maquiavel tem a alegria de obter a consagração de uma das suas ideias, a formação de uma «ordinanza» florentina, uma milícia militar organizada, um exército regular não mercenário. Escreve nesse ano as Decennale primo, crónica dos acontecimentos italianos ocorridos entre 1494 e 1504.
No ano de 1506 o Papa Giulio II declara guerra a Perugia, Bolonha e Imola. Maquiavel, que acompanhara o guerreiro Sumo Pontífice[9], redige, com base no que observara, os Ghiribizzi scripti in Perugia al Soderino.
Em 1507 é enviado ao Tirol, com o seu colega e amigo Francesco Vettori, para uma missão diplomática junto do Imperador Maximiliano de Absburgo. Regressado, escreve no ano seguinte o Rapporto delle cose della Magna.
Em 1509 Giulio II reapropria-se da Romagna. No ano seguinte o Papa alia-se com Veneza, o que provoca tensões com a França. Para tentar mediar o conflito, cada vez mais latente, Maquiavel é enviado a Blois. Aconselha Soderini a tomar partido, ou por Giulio II ou por Luís XII, mas este insiste numa lógica de equilíbrio. Regressado das terras de França, Maquiavel redige Ritratto delle cose di Francia.
Em 1511 constitui-se a Liga Santa, formada pelo Papado, pela Espanha, pela Inglaterra, pela Suíça e pelo Império contra a França. Luís XII convoca, para Pisa, um concílio que depõe o Papa.
Em 1512, ano da batalha de Ravena e da vitória francesa, os Sforza retomam o poder em Milão e os de ‘ Medici em Florença, pondo termo ao regime republicano.
É este o ano fatal. Regressamos a ele, Maquiavel em apuros, res perdita. Sujeita-se a uma travessia pelo deserto, na mira de que os novos senhores o contemplem com algum trabalho que lhe restitua conforto e utilidade.
Em 1515 um acordo de paz entre o Papa Leão X e o rei francês Francisco I, que sucedera a Luís XII, falecido nesse ano, atribui a este a obrigação de garantir o poder dos de ‘ Medici em Florença.
Só em 1519, com a morte de Lorenzo II, Maquiavel consegue o seu regresso à importância perdida. O novo senhor de Florença, Giulio de ‘ Medici, solicita-lhe, em nome do Papa, que elabore um projecto de Constituição para a cidade.
A partir de então os trabalhos de que o incumbem são menores. Em 1520 vai a Luca para defender os interesses dos mercadores florentinos envoltos numa falência, em 1521 a Capri para diligenciar que os conventos florentinos sejam separados dos toscanos.
Em 1525 é enviado a Faenza e a Veneza em missões diplomáticas e no ano seguinte, um ano antes de morrer, é nomeado «magistrato dei Procuratori delle mura» da cidade, último cargo público que desempenhará.
Dá-se entretanto a guerra. O Papado, a França, Milão e Veneza formam a Liga de Cognac contra o Império de Carlos V. Em 1526, com a paz de Madrid, Francisco I cede Milão à Espanha, que ocupa a cidade.
A 26 de Abril de 1527 os opositores dos de ‘ Medici atacam e ocupam o Palazo Vecchio. A 6 de Maio Carlos V ocupa Roma e saqueia-a.
A 18 de Maio é declarada a República em Florença. Maquiavel ainda tenta oferecer os seus préstimos, mas em vão: acusado que foi pela sua ligação aos de ‘Medici, comprometido pelo que se começava a conhecer de O Príncipe, fecham-se-lhe as portas.
Morreu a 21 de Junho, triste, desiludido e resignado.
Como notou Viroli[10], num recente estudo sobre a sua personalidade, a poucas semanas da morte, ocorre assim o mais grave acto da tragédia italiana: a Itália unificada, forte, armada, levada à República através de um príncipe capaz, fica como sonho impossível, o território ocupado por tropas estrangeiras, o Papa em fuga. É como se a sua vida tivesse sido em vão.

+

[1] Tive dificuldade em traduzir o verbo original «m’ingaglioffo» e só alcancei a verdadeira compreensão do mesmo quando vi em Viroli [obra citada infra, página 151] a menção ao seu sentido. Trata-se de uma forma verbal inventada por Maquiavel que significa afundar-se na vulgaridade e na sordidez.

[2] A carta é citada amiúde. Na edição portuguesa de O Príncipe publicada pela Coisas de Ler, António Simões do Paço transcreve parcialmente este excerto.

[3] Dado que Giuliano de ‘Medici morreu em 1516 a obra acabaria por ser dedicada a Lorenzo, duque de Urbino.

[4] Bernardo Rucellai criou o jardim junto ao Palácio de seu pai. Tornou-se o centro da vida intelectual da cidade. Numa primeira fase era uma ambiência aristocrática claramente antagonista ao governo «popular» de Piero Soderini. Caído este, começa a surgir toda uma plêiade de novos frequentadores, já de uma extracção política de simpatia pelos de ‘ Medici, ao lado dos filo-republicanos como Maquiavel, Nardi, Giannotti, Alamanni, Buondelmonti, etc.

[5] A datação dos escritos de Maquiavel é ainda hoje um problema complexo, quer porque algumas obras foram sucessivamente acrescentadas, quer porque ou circularam ou foram conhecidas em exemplares autógrafos, tendo tido edições impressas bastante posteriores, quer porque algumas suscitam dúvidas quanto à natureza definitiva do próprio texto.

[6] A data exacta da redacção dos Discorsi é disputada, pois neste seu opúsculo De principatibus, Maquiavel escreve: «Io lascerò indreto il ragionare dele republiche, perchè altrà volta ne ragionai a lungo. Volterommi solo al principato». Resulta daqui que a obra estaria, pelo menos, pensada, e que «altrà volta» a trataria. O termo da redacção do livro tem sido situado, de modo não inquestionável, em 1517.

[7] Carta a Duarte Ribeiro de Macedo, escrita em Roma em 1672. Macedo, como vimos, é um expoente do nosso pensamento setecentista sobre Maquiavel.

[8] Os apoiantes de Savonarola ficaram conhecidos como os «piagnoni», devido ao queixume constante que fazia parte do modo como lamentavam o mundo venal e pecaminoso que viam à sua volta.

[9] Papa guerreiro na verdadeira acepção do termo, a entrar em Mirandola, de armadura vestida, pela escada de assalto, porque a porta era murada e a ponte fora deitada abaixo! A tal ponto a sua imagem era a oposição da santidade que em 1556 circulou um panfleto alemão comparando-o ao próprio Demónio: Vergleichung zwischen Christo und Belial.

[10] Maurizio Viroli, Il sorriso di Niccolò, Storia di Machiavelli, 1998 (1ª edição), 2000 (2ª na Gius. Laterza & Figli), Roma-Bari.

15.5.12

Escrever para longe

Mantenho, esparso, este blog que dedico ao meu interesse pela "filosofia portuguesa", o território especifico que tem conhecido essa denominação, não a filosofia que se faz em Portugal ou por portugueses. É uma sorte de recusa do racionalismo e seus monstros, do cartesianismo e suas ilusões. Chamei-lhe Geometria do Abismo, que é uma frase do Livro do Desassossego. De Geometria filosófica se trata, desenhada com um pequeno ramo de cerejeira na areia da praia e por isso de recusa da Aritmética e seu mundo contável.
Hoje li esta carta do Álvaro Ribeiro para o António Telmo, desesperado ao saber que ele interrompera a sua escrita. E informa: «Nesta Lisboa dos cafés vão-se desmoronando as tertúlias, em consequência das invejas e das intrigas. Há duas semanas que não vejo o António Quadros. As conversas habituais causam desânimo. O que me vale, acredite, é o vício de escrever para longe…». Foi em 30 de Outubro de 1958 que isto foi dito. [o texto integral está aqui]. Podia ser hoje, já sobre os escombros do desmoronamento total.
Leio e uma angústia mansa nascida de um mundo em falta apodera-se como uma náusea de um prolongado jejum.Tenho de voltar ao estudo, organizar os livros, entrar pelas leituras a dentro, como quem passeia depois de jantar, refastelando o corpo, ou antes de o dia lhe amanhecer a Alma. 
Uma pessoa é sempre mais do que aquilo que aparentemente está, porque há o limbo entre o desejo e o sonho, horizonte de viagem.

13.5.12

A abnegação da fé

Esquecem muitos que a ideia de que Maria é a Padroeira de Portugal resultou da política, de acto de Dom João IV, em 1654,não de nenhum acto que da religião derive.
Esquecem outros que o conceito da imaculada concepção por Maria da pessoa de Cristo resulta de um dogma imposto pelo Vaticano, a 8 de Dezembro de 1854, não de uma noção que a fé necessariamente acompanhe. Cito da Bula Pontifícia: «Em honra da santa e indivisa Trindade, para decoro e ornamento da Virgem Mãe de Deus, para exaltação da fé católica, e para incremento da religião cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, e com a nossa, declaramos, pronunciamos e definimos a doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do género humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original, essa doutrina foi revelada por Deus e, portanto, deve ser sólida e constantemente crida por todos os fiéis.»
Tomás de Aquino, dominicano, o Doctor Angelicus da Igreja, entre o negá-lo e o pô-lo em dúvida definiu sobre essa pureza original de Maria o seu pensamento, ele que é o um dos expoentes máximos da Teologia cristã: poupada ao pecado original, não mãe sem acto criador provindo de homem, mãe de filho amputado de amor físico, essência, afinal, do Amor total.
Esquecem quase todos que o culto mariano é lei para a Igreja, definida desde primeiro Código de Direito Canónico, de 1917 e hoje no cânone 1816 quando reza: «Para fomentar a santificação do povo de Deus, a Igreja recomenda à veneração especial e filial dos fiéis a Bem-aventurada sempre Virgem Maria, Mãe de Deus, a quem Cristo constituiu Mãe de todos os homens, bem como promove o verdadeiro e autêntico culto dos outros Santos, por cujo exemplo os fiéis se edificam e pela intercessão dos quais são sustentados.»
O que não se esquece é que na religiosidade popular portuguesa, a Virgem Maria, é objecto de um carinho especial: por ser Mãe em terra órfã, talvez, mas também por ser a a medianeira e a "correntedora", intercedendo junto do Céu e estabelecendo a corrente para que, na hora da Juízo, o Homem se salve do Inferno.
No comércio das almas ei-la, pois «advogada nossa».

5.5.12

Maquiavel: escrever para parecer vivo (2)

Continuo a publicação do que escrevi em 2008 para a apresentação do livro O Príncipe de Maquiavel. É a segunda parte desse texto. Divulgo-o para que possa ser lido pelos que não quiserem ignorá-lo.
Estamos no dia 7 de Novembro de 1512, em Florença.
O Secretário da Segunda Chancelaria, cumulativamente Secretário dos Dieci di Libertà, organismo incumbido da defesa da cidade, Niccolò «Machiavegli» - como assinava então – é informado pela Senhoria que perdeu os seus lugares, estando deles exonerado, sendo substituído por um também Niccolò, mas Michelozzi, de quem não reza hoje a História.
Mudara o regime que governava a cidade, os de ‘ Medici haviam regressado em força, depois de dezoito anos de exílio [1].
Piero Soderini, o gonfaloniere [2] vitalício, cabeça da ordem política agora caída, vira ser-lhe retirado, num primeiro momento, essa perenidade do cargo, para ser depois substituído por Giovan Battista Ridolfi. A sua tibieza, a incapacidade de lidar com os graves problemas do seu tempo, o facto de ter consentido a realização do Concílio cismático de Pisa – evento animado pelo Rei Luís XII de França e que levou à queda do Papa Giulio II – foram a causa da sua desgraça.
Niccolò, considerado um «mannerino» do deposto, um instrumento da sua política, teria de seguir-lhe os passos.
A estrutura do mando é profundamente alterada.
Tanto Maquiavel como o seu dilecto coadjutor, Biagio Buonaccorsi, sabem que a sua posição está em causa. Aqueles que haviam servido estão apeados.
Para o autor de O Príncipe nasce aqui a grande lição de vida, a confirmação do essencial da sua filosofia, o que faz dele, séculos volvidos, o mestre observador da arte da política: a bondade, a generosidade, a tibieza, o escrúpulo moral são, na política, instrumentos inúteis.
Comentando, em um dos seus Discorsi, o comportamento daquele seu senhor, agora caído, censura-lhe a paciência e a bondade de alma e, sobretudo, o ter seguido os «humores da multidão», preterindo os conselhos dos «homens sábios», franqueando as portas aos seus adversários; ao não ter tomado as medidas extraordinárias que a situação exigia, perdera a Pátria, o Estado e a sua própria reputação.
O regime que servira caíra ante a sua «incapacidade de fazer mal» [3]: eis, nesta apologia do mal, neste desprezo pela inocência do bem, nesta ênfase do conselho da aristocracia dos sábios, neste relegar dos humores da multidão, a estrutura resumida do que pensava Maquiavel sobre o modo como deve agir o político, para que possa conseguir sucesso, no meio hostil em que tem de sobreviver.
Maquiavel conhece o terreno que pisa e tenta seguir os seus próprios conselhos, serve-se da lisonja, essa perfídia dos fracos. É por isso que, astuto, mesmo já apeado e com a desgraça a bater-lhe à porta, tenta exprimir o seu «obsequioso respeito» pelos novos senhores, manifestar a esperança abonatória em que a «quietíssima cidade» pudesse continuar a viver tão honrada agora que era governada por estes «magníficos» de ‘ Medici, como sucedera quando fora governada pelo antecessor dos novos senhores, o excelente Lorenzo, falecido em 1492.
Só que é tempo de perseguição e nem a adulação lhe vale como escudo ou como espada. No dia 10 o Secretário fica a saber que lhe é proibido ausentar-se do domínio florentino e que fora condenado a uma multa de mil florins; uma semana depois, a 17, é vedada durante um ano a sua entrada no Palazzo Vecchio, onde servira; até 10 de Dezembro sofre ainda uma ignominiosa investigação ao modo como administrara o dinheiro destinado ao pagamento da milícia florentina. A Justiça sempre gostou de se mostrar forte com os fortes enfraquecidos.
Inicia-se assim um tempo de exílio, que virá a agravar-se no ano seguinte: as ideias deste homem irão castigá-lo através da penitência física, pela dor e pela privação.
Aquilo que havia sido a hipocrisia ao serviço da vida diplomática e da manutenção da sua carreira, como servidor dos interesses de Sua Senhoria, tornar-se-á razão e sistema, a vida sofrida, mestra.
Uma conjura, em que são dados como envolvidos Agostino di Luca Capponi, Pietro Paolo Boscoli, Niccolò Valori e Giovanni Folchi, move-se contra os de ‘ Medici, o assassínio do Cardeal Giovanne pensado pelo bando como um meio cristão de livrar a cidade do que consideram ser um dos fundamentos da tirania.
As autoridades descobrem-na e o nome de Maquiavel é encontrado numa lista que um dos presos supostamente teria perdido. À demissão, à fixação de residência, à condenação em multa, segue-se agora a prisão.
Ausente de casa, as autoridades tinham lançado editais ameaçando com pena de confisco e por rebelião os que sabendo onde ele estivesse não o denunciassem em uma hora e conseguiram assim, pelo medo, que não pela recompensa, deitar-lhe a mão.
Tudo se lhe muda do dia para a noite. Perdido o conforto das antecâmaras do poder, segue-se agora o sofrimento da cadeia e, com ela, vinte e dois dias de cárcere e de tortura, dias horrendos, de ferros e correntes, passado pelas cordas várias vezes, temendo pela própria vida, como escreveu a 26 de Junho, numa carta ao sobrinho, o mercador Giovanni Vernacci, filho de sua irmã Primavera, na altura comerciante em Istambul.
Pietro Boscoli e Agostino Capponi são condenados, pelos Otto [di Guardia], à morte por decapitação, sofrida a 23 de Fevereiro. Da sua cela, as pernas atadas, Maquiavel segue-lhes os últimos momentos, os cânticos fúnebres, intui o golpe de machado que arrancou a cabeça a Pietro, as duas machadadas que foram necessárias para a separar do corpo do infeliz Agostini, como se a vida quisesse demonstrar, simbolicamente, aos seus ineptos carrascos, quanto essa incapacidade de o matarem era sintoma de uma inocência que até ao fim proclamara.
Incerta a sua responsabilidade, Maquiavel continua preso e é sujeito a tortura para que confesse. Sofre o suplício de seis tratos de corda, o polé, içado e solto em queda livre, quase a pontos de se desmembrar, as costelas se lhe rasgarem, a dor o fazer vergar, dizendo assim a verdade ou a mentira, qualquer coisa que satisfizesse, enfim, os juízes, sossegando-lhes a consciência punitiva pré-formada. Porém, resiste, ironizando com a miserável condição em que se encontra, loca infecta, a que ele por ironia chama, num verso entretanto escrito, a poesia como companheira, o «sì delicato ostello» .
Preso por ter traído os de ‘ Medici, Maquiavel vai ver os seus tormentos terem fim, paradoxalmente – ironia do destino – por causa do aumento de poder da poderosa família dos “Palleschi”, nome que lhes adveio por causa das bolas que ornam a sua cota de armas, símbolo heráldico dos seus: com a aproximação da Primavera, a 12 de Março do ano de 1513, a cidade comemora a eleição de mais um Papa, mais um de ‘ Medici, Giovanni, segundo filho de Lorenzo, «O Magnífico», que ascende com o nome de Leão X, substituindo Giulio II no trono de São Pedro.
A cidade entra em festa para celebrar o evento, um autêntico carnaval vive-se por cinco dias nas ruas, nas casas e nos palácios, muitos no sonho delirante da paz perpétua, outros pelo simples gozo venal do contentamento pagão. Os florentinos imaginam já as benesses que podem cair-lhes do céu com um Papa a que podem chamar seu.
As prisões abrem entretanto as portas, a velha superstição de que dar liberdade liberta. Maquiavel é solto.
Salvo da má fortuna, este homem sabe que os corredores do poder, de que fora funcionário, estão para trás. Expulso da cena palaciana resta-lhe, por cautela, retirar-se. Mas não desiste. Servir os grandes, tornando-se-lhes útil é, afinal, a sua biografia. Usa, para tanto, a única força que tem ao seu dispor – escrever – e a única forma como o sabe fazer – a ironia.
Ainda na cadeia, Maquiavel não baixara o nível da esperança. Estudiosos da sua controversa vida situam dois sonetos, uma canção («Se avessi arco») e um «Capítulo Pastoral», como tendo sido escritos naquelas adversas condições carcerárias, na ânsia de obter a graça do «Magnífico Giuliano», irmão do Papa.
Textos inesperados, eles são a melhor demonstração de uma ambígua personalidade em que, naquele ambiente de incerteza, diminuído pelo medo, minado pelo sofrimento, não o abandona o riso de altivez que o aproxima, aos olhos de tantos, do velhaco calculista e do lisonjeador interesseiro.
A poesia, com a sua capacidade de concentrar em imagens conceitos extensos é, por ventura, o melhor auto-retrato da sua pessoa. E o que escreveu sobre a sua condição de preso, o que deixou sobre a execução de Boscoli e Capponi, é a demonstração do que sente quando pensa: «(…) dormindo à beira da aurora/cantando ouvi dizer: “Por vós se ora”/ ora, que vão em paraem boa hora», é o modo como se refere ao momento em que o carrasco leva para a morte os seus companheiros de infortúnio.
Para que os de ‘Medici saibam que, nada o ligando aos conjurados, a execução destes não lhe afecta sequer a consciência, faz-lhes chegar mãos, aquele verso cínico: «vadin in buona ora»,
Sofrido o cárcere, eis uma natureza que a privação da liberdade moldara e que se vai refinar agora, lançado ao desprezo, o ócio dando-lhe oportunidade, os áureos tempos antigos apontando-lhe o horizonte, o imaginário de grandeza passada tornando-o paradigma do cinismo na acção, a mofa uma forma de mentir com a verdade, de confundir o mal que aconselha com a maldade de que parece mero observador.
Tudo surge a seu tempo.
De homem de acção transforma-se em pensador, sendo a maioria dos seus escritos anteriores relatórios das actividades diplomáticas. Publicara, é certo, o que poderia passar por poesia pura, as suas primeiras Decenais, sob o título de Nicolai Maclavelli florentini compendium rerum decennio in Italia gestarum, 183 tercetos escritos em quinze dias, obra que era uma narrativa laudatória dos acontecimentos vividos entre 1494 e 1504, estando o autor ao serviço do governo de Soderini e do seu projecto de Ordinanza florentina.
O mundo mudara. A política que servira não o quer. A pena é a sua companhia, a necessidade a sua única virtude. Ante a tragédia, o sorriso. Há que escrever, mas a anteceder qualquer outra escrita, a que permita viver.
É pela necessidade que, logo no dia 13, escreve ao seu amigo Francesco Vettori [4], designado, desde 30 de Dezembro de 1512, Embaixador [«oratore»] da República junto da Cúria, em Roma, rogando-lhe que interceda por si e pelo irmão Totto.
A vida havia-os separado. Vettori vive uma vida prestigiada, cortesã, despreocupada, lamentando apenas a ociosidade e o ter de auto-conter-se na sua postura que, não fossem as conveniências, seria libertina e irresponsável; Machiavelli conhece agora a penúria, o confinamento, a luta pelo pão, a ausência dos círculos onde se movera e de meios para gozar a boa vida, em breve estará retirado para a pobreza rural, local onde tenta, escondendo a sua diminuída pessoa, salvar-se do desdém com que outros o possam olhar.
A carta [5] é um acto de contrição, um lamento, uma forma submissa de pedir. Maquiavel promete ser mais cauteloso e espera que os tempos novos sejam mais liberais e menos suspeitosos. Roga que o irmão seja colocado entre os «familiares» do Papa de ‘ Medici e com isso beneficiado. Para si próprio suplica que o Sumo Pontífice, ou os seus, o possam aproveitar em «qualche cose». A humildade na forma de pedir mostra a que ponto a necessidade já enfraquece o orgulho.
Escreve de novo, cinco dias volvidos, ao seu amigo «Magnifice Orator», respondendo à missiva que, entretanto, recebera daquele a quem pedira ajuda e que, cauteloso, se mostra parco em prometer [6].
Sem possibilidade de subsistir na cidade, jogando na prudência de não espicaçar a sorte, Maquiavel retira-se para a sua modesta propriedade em Sant’Andrea, localidade de La Strada, na Percussina, junto a San Casciano in Val di Pesa, na Toscânia, enfrentando a paz agreste do exílio.
Dali escreve, a 9 de Abril, uma nova carta a Francesco, a qual assina, contristado, como «Niccolò Machiavelli, quondam Secret.» [outrora Secretário]. É um Maquiavel desalentado, que se conformou com «não desejar coisa alguma com paixão» mas que tenta, com afectuosa cortesia, não se mostrar excessivamente decaído na sua desgraçada fortuna.
Uma semana depois o seu estado de alma deteriora-se. A família, extensa, a expensas suas, é agora um espinho de preocupação, todo o mal parece confluir ao mesmo tempo. Conta a Vettori o que passa e pede-lhe que não se iluda com a aparência risonha com que parece enfrentar o infortúnio. Di-lo em verso triste: «Mas se por vezes rio ou canto /Louco porque só tenho esta /Via para aliviar o meu amargo pranto».
É aí, no seu Albergaccio [7], durante o quente Verão, na frugalidade da vida rústica, que começa a redigir o que viria a ser este livro, embora sucessivamente, como dirá, «io lo ingrasso e ripulisco». Muitos dos pensamentos que nele se consagram elaborou-os na correspondência com Francesco Vettori, «patrono e benefactori suo», onde, a par com trivialidades do dia-a-dia, insistindo sempre em que algo este lhe encontre que lhe permita reencontrar o seu sustento e o dos seus, trata, com largueza, temas políticos de estratégia diplomática e militar.
Aprendera, com a má sorte, a arte de saber resistir, a trocar a vida pelo «parere vivo», como dirá numa carta de 29 de Abril [8].
Em suma: ao escrever O Príncipe Maquiavel visava um pequeno e interesseiro propósito, a sua reaproximação aos de ‘ Medici. Mas, sem o saber, revolucionou o mundo das ideias, que são a mãe de tudo o que existe. Não conseguindo o pouco que queria – a mediania do seu emprego de Secretário – guindava-se ao panteão da História dos grandes vultos.
A sua memória ficou prisioneira desse livro; julgamos conhecê-lo através dele. É um erro.

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[1] Sobre os de ‘Medici é extensa a bibliografia, superior a cinco mil títulos. O leitor português encontrará, como curiosidade, a biografia superficial da família escrita por um seu descendente contemporâneo, curiosamente também Lorenzo de ‘ Medici. A obra está traduzida em português sob o título Os Médicis, a nossa história, e foi publicada em 2003 pela D. Quixote. Curioso o porquê da escrita: «vendidos os palácios, fechadas as grandes casas de campo, nós, os membros da última geração, sabemos muito bem qual é o nosso dever: manter vivo um nome do qual julgamos poder estar legitimamente orgulhosos».

[2] O governo de Florença era então confiado bimestralmente a nove cidadãos eleitos com o título de «gonfaloniere» [gonfaloneiro em português]. Piero Soderini [1452-1522] sê-lo-ia por designação vitalícia, mas o seu mandato acabou por durar apenas oito anos.

[3] Quando Soderini morre, a 13 de Junho de 1522, Maquiavel dedica-lhe estes sintomáticos versos, em que a inocência pueril do gonfaloniere está à vista: «La notte che morì puer Soderini/l’alma n’andò dell’ Inferno a la bocca;/gridò Pluton: - ch’Inferno? anima sciocca,/va’ su nel Limbo fra gli altri bambini».

[4] Francesco Vettori nasceu em 1474 e faleceu em 1539, sendo mais novo do que Maquiavel. Conheceram-se no quadro da actividade diplomática de ambos e tornaram-se amigos. Trocaram uma longa séria de epístolas, sobretudo a partir do momento em que o Secretário caiu em desgraça. A leitura deste epistolário permite reconstituir o perfil psicológico e o ambiente histórico em que o nosso autor viveu. Cartas de aparência severa e grave, elas escondem, como diria Maquiavel numa delas, escrita a 31 de Janeiro de 1515, duas criaturas que, tal como a Natureza, são variadas na essência do seu ser «leggieri, inconstanti, lascivi, vòlti a cose vane».

[5] Carta encimada em latim ao «Magnifico viro Francisco Victorio oratori florentino digníssimo apud Summum Pontificem».

[6] A carta de Francesco é um exemplo acabado de refinada subtileza ante o infortúnio que não pode socorrer. Por um lado anima-o - «voi facciate buon cuore a questa persecutione, comme havete fatto all’altre che vi sono state fatte» - por outro distancia-se - «speriate che poichà le cose sono posate, e che la fortuna di costoro supera ogni fantasia e discorso, di non havere a stare sempre in terra». Maquiavel, inteligente e habituado ao género, deve ter compreendido a indisponibilidade do amigo e a hostilidade do meio em que este se movia, mas responde, considerando a carta «gratíssima» e «amorosa» e num assomo de dignidade, deixa claro que viverá como puder, com os poucos meios de que dispõe: «io mi viverò come io ci venni, che nacqui povero, et imparai prima a stentare che a godere».

[7] Que deixará em testamento a sua mulher Marietta Corsini.

[8] A frase ganhou foros de perdurabilidade. Cito-a no seu contexto: «Pure, per parere vivo e per ubbidirvi, dirò quello mi occorre(...)».

4.5.12

O aniversário de Maquiavel

Nasceu no dia de ontem. Em 1496. Não me foi possível vir aqui comemorá-lo. Faço-o hoje, publicando um primeiro excerto de um texto que escrevi em 2008 para que servisse de apresentação ao livro O Príncipe por causa do qual o seu nome foi amaldiçoado. A Editorial Presença editou-o, traduzido directamente do italiano.
Esse meu estudo, como já disse aqui, foi praticamente ignorado. Talvez por ser contra a corrente. Nunca ninguém se atravessou a apontar-lhe defeitos ou erros. O silêncio foi o método e a punição. Escrevi-o porque me impressionou que este homem tenha reduzido a uma caricatura grotesca do que realmente foi. Que este seu livro tenha sido diabolizado quando nunca o publicou em vida e ele tenha sido reduzido a esta obra. Que os ferozes críticos que conheceu e conhece tenham tido toda a liberdade de expressão e, no entanto, a obra tão pertinazmente criticada tenha entrado no Index dos livros proibidos pela Igreja Católica. Eis, em homenagem, com a devida vénia ao editor:


«Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel»

Villari




Encerro este texto de apresentação na véspera de terminarem os cinquenta e oito anos da minha vida, a idade com que morreu Niccolò Machiavelli. E encerro-o lembrando um pensamento seu: numa cidade corrupta as repúblicas não podem manter-se nem recriar-se. Por isso, ele terá escrito O Príncipe. Por causa disso a História amaldiçoou-o, condenando-lhe o nome, como se através da desconsideração pública lhe ferisse o coração da honra. Vejamos como.
Este exercício, porque trivial, é para isso, um começo necessário. Consulte-se um dicionário da língua portuguesa, uma enciclopédia, para maior alcance: Maquiavel deu origem, pelo menos no nosso léxico, ao substantivo maquiavelismo e ao adjectivo maquiavélico. É uma escalada que, começando com um nome de pessoa, termina num qualificativo de sentido pejorativo. Veja-se, por exemplo, a Enciclopédia Luso-Brasileira: «maquiavelice: acção ou dito maquiavélico; astúcia, ronha, manha, ardil»; «maquiavelismo: sistema político que assenta na astúcia, na perfídia e que foi exposto por Maquiavel» [1].
Só a um homem de excepção sucede um tal azar. A causa disso foi um livro que ele nunca chegou a publicar, editado em 1532, sete anos após a sua morte, precisamente este livro escrito por quem sofreu a «malignidade da Fortuna», como ele descreveu a fatalidade do seu percurso.
Esta apresentação é a narrativa de uma tragédia existencial, O Príncipe visto como um produto de amargura, de grandeza agónica, de desespero mas, também, nas sucessivas interpretações que concitou, um espelho das doridas contradições sociais, políticas e religiosas dos vários séculos de História durante os quais a obra sobreviveu até chegar, como um clássico, aos nossos dias. Tudo convergiu para que o acaso não pudesse gerar diferente destino. A verdade do escrito é a do efeito que produziu.
Descobri que para ler este pequeno livro e entender a complexidade que se esconde por detrás da sua vulgar linguagem importaria conhecer o seu autor, retirá-lo do imaginário colectivo, que ora o transformou numa espécie de cortesão alcoviteiro de tiranos, com eles partilhando os arminhos do poder, ora em republicano desprezado pela República, amigo do povo e dele seu discreto defensor, e ir buscá-lo ao momento de exílio, «res perdita», sofrido o desemprego, sujeito à prisão e à tortura, o dia gasto em convívio com gente boçal, a noite esgotada em fantasias delirantes em companhia dos Antigos, a dura modéstia do quotidiano e a ânsia de obter «qualche cose» dos de ‘Medici ou do Papa, um de ‘Medici também [2], algo que lhe devolvesse o sentido de utilidade e algum rendimento, como nos tempos idos em que era o Secretário da Segunda Chancelaria da cidade de Florença.
Filho de advogado literato e por isso pobre, Nicolau Maquiavel, cultor das letras, pobre morreu também. Legou-nos, inédita, uma obra que é um sonho fantasioso de grandeza, tal como o estranho sonho que terá tido, segundo consta, antes de morrer [3].
Mas não basta conhecer o homem e a sua circunstância, importa também ter a percepção dos variados contextos pelos quais a obra passou ao longo do tempo e as mais antagónicas leituras que proporcionou, sempre sem esquecer em que estado se encontrava a península itálica onde foi escrita e encontrada a crueza do poder e a malícia interesseira generalizada, afinal o cenário desta encenação, «O Grande Teatro do Mundo».
Estamos no reino da complexidade. Sente-se isso vendo, por exemplo, o modo como a Cúria romana recebeu a obra, com a naturalidade, primeiro, de quem observa coisa sua, para depois a condenar ao catálogo dos livros proibidos.
O livro foi aceite primeiro com indiferente contemporização por um Papado corrompido e em promíscua relação com o poder temporal, destinatário natural de muitos destes pensamentos; no capítulo XI, dedicado aos principados eclesiásticos [4], o Papa Leão X vê o seu pontificado retratado como «potentíssimo» e Maquiavel a augurar que, erigido «com armas» pelos seus «santíssimos» antecessores, seja agora «grandíssimo e venerando» através da sua «bondade e infinitas outras virtudes». Não poderia haver maior lisonja.
Pouco mais de quarenta anos volvidos, em 1559, por decreto do Papa Paulo IV [nascido Gian Pietro Caraffa] [5], O Príncipe entrava, porém, na lista dos livros amaldiçoados pela doutrina católica e, a partir daí, ler Maquiavel passou a significar estar em pecado de heresia, o autor queimado em efígie, os teólogos a clamarem pela fogueira como argumento final contra o seu pensar.
Mas foi no campo da política que a obra sofreu as mais diversas interpretações e serviu para legitimar as mais distintas ideologias: caucionou tiranias e foi tida como expoente de democracia, apontada como exemplo de realismo político e como manifesto de resistência amarga de uma vítima do poder. O marxista Antonio Gramsci [1891-1937] [6] leu apreciativamente o livro na frieza do cárcere, o fascista Benito Amilcare Andrea Mussolini [1883-1945] citou-o [7], como exemplo, nos seus histriónicos discursos. O Príncipe é, pois, uma excelente demonstração de que cada coisa contém em si própria o seu contrário.
Livro herético, ele moveu, logo desde o século dezasseis, uma cruzada anti-maquiavelista, que levantou pendão nos campos de batalha do pensamento filosófico, histórico, político e ético, mobilizando forças para o enfrentar, como se contra o próprio Demónio se travasse esse combate.
Curiosamente, parte substancial dessa peleja passou por Portugal como uma decorrência do mandato ingente da propagação do Império através da Fé.
«Espanha e Portugal colocam-se desde a primeira hora em oposição política a O Príncipe», escreveu, em 1939, Vergílio Taborda, professor da Faculdade de Letras de Coimbra [8], quatro anos depois de ter surgido, pela mesma editora, a primeira versão do livro em língua portuguesa. E porquê? Porque, escreve Taborda, «defendendo a cidadela da fé em todos os campos, a Península não deixaria de fazê-lo também no da política. O maquiavelismo era a expressão máxima da política nova, realista e pagã: combatendo-a, as nações peninsulares não se afastavam do caminho que se haviam proposto percorrer».
Eis, encontrada no espírito do seu tempo, a bandeira intemporal de um exército que ainda hoje se não desbaratou e cuja linha da frente é encabeçada pela defesa da moral religiosa enquanto conceito ético do poder justo, contra a «visão pessimista da realidade humana», contra a «política de força», a «política de dissimulação e de perfídia».
No ano passado, Martim de Albuquerque, um historiador de pensamento filosófico conservador e de inspiração religiosa [9], dedicado à História das Ideias Políticas [10], publicou um livro [11] em que defende a tese segundo a qual o pensamento «maquiavélico» - eis como o trata – é incompatível com o que chama «a ética tradicional portuguesa», a mesma que, segundo ele, criou a figura do «fidalgo», seu antagonista e da sua moral prática.
O livro amplia um outro, escrito em 1973 e publicado em 1974, pelo Instituto Histórico Infante Dom Henrique, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa [12], que se inspirara num trabalho sobre o mesmo tema e – curiosamente – com o mesmo título, escrito por Mário de Albuquerque [13], em 1954.
Trata-se de uma obra de fôlego, profundamente documentada, que permite ao autor concluir que «o pensamento tradicional português é antimaquiavélico» e que o maquiavelismo «é incompatível com a necessidade da expansão e com a psicologia de um povo sonhador de quinto-impérios e criador do tipo ideal do fidalgo».
O Príncipe é, pois, um pequeno livro que ainda hoje suscita grandes paixões na delimitação da fronteira entre a virtude e o pecado no campo da política e da própria filosofia do comum viver.
Sucedeu assim porque o autor e a obra, uma vida e um livro, uma narrativa e uma doutrina, se confundiram numa mistura sincrética, pela qual se condenou à maldição eterna este opúsculo que, numa fórmula de Bertrand Russell, é «um livro para gangsters».
Mas não pense o leitor que tem em mãos páginas que apenas suscitaram censura e concitaram contra si detractores e maldizentes. Fazendo contemporânea recensão do muito que se escreveu sobre Maquiavel, Isaiah Berlin [14], um espírito lúcido e erudito, acumularia um tão vasto acervo de epítetos, tão pitorescos quanto entre si contraditórios, a propósito do Secretário, tudo a mostrar que, amado ou odiado, ele teve o condão de, secula seculorum, não deixar ninguém indiferente e muitos tomaram mesmo partido em seu favor. Benedetto Croce considera-o um homem de «uma austera e dolorosa consciência moral» [15], Ridolfi [16] acha-o «um cristão especial».
Ciente da impossibilidade de abarcar esta labiríntica literatura [17], em que já florescem estudos sobre os estudos maquiavelistas, coube-me, por gentileza do editor, o pesado encargo de escrever umas linhas de apresentação de O Príncipe. Ao fazê-lo, tive de convencer-me de duas coisas.
Primeira, que Niccolò Machiavelli não é coutada privativa de historiadores ou de «cientistas» políticos – que são a grande multidão que dele se ocupa – pois a multiplicidade do seu ser e o polimorfismo do seu pensamento tornam-no um espelho da própria vida. Há uma frase de Giovanni Papini que resume tudo: acusar Maquiavel «é acusar o próprio espelho», o mesmo é dizer, nele está a totalidade de todos nós e cada um em alguma particularidade do seu ser.
Segunda, que tendo sido dito tanto e, sobretudo, tanto contra Maquiavel, era tempo de lê-lo e ousar dizer, como se pela primeira vez: a cada um o seu Maquiavel, pois todo o Homem é livre de se rever no Maquiavel que haja em si e nos outros que o cercam, sendo a vida o combate com o demónio que possui o irrequietismo de cada criatura.
Devo ao acaso da leitura de um pequeno texto, de Henrique Barrilaro Ruas, ter-me sido possível levar os olhos um pouco mais alto do que a vulgaridade com que entendia a obra que agora apresento e ter sido capaz de compreender «a necessidade ou conveniência científica de distinguir e destacar o maquiavelista […] do maquiavélico» [18]. Foi por aí que comecei o meu estudo. Sem isso seria mais um que faria à obra a injustiça de tomar partido. Como Maquiavel põe na boca de Calímaco, na sua notável peça de teatro La Mandragola: «uma coisa gera outra e o tempo gera todas».
No momento em que escrevo sinto o conforto de saber que muito se evoluiu na percepção e na avaliação deste controverso autor e haver assim espaço para outras visões pessoais que não tenham de se inserir nas trincheiras onde se tem travado o combate ideológico em torno da interpretação e aplicação de O Príncipe.
O aprofundado conhecimento da integralidade da sua obra – não apenas dos escritos políticos, mas os do comediógrafo, do poeta, do simples escritor de cartas – a contextualização da mesma na época do Renascimento que a ditou – e tudo quanto tal significa de ruptura com a visão teocêntrica da vida e do Homem – a ponderação da situação política que lhe foi dado viver – a ânsia da unificação de uma Itália pulverizada, traumatizada por sonhos de glória passada – enfim, um levantamento biográfico exaustivo sobre a triste misantropia e a gaia ironia da sua conturbada vida, tudo isso permite uma nova visão, mais abrangente e, sobretudo, mais enriquecedora porque mais realista.
Há hoje, no fluir contínuo do pensamento e do sentir, que são a fonte da inteligibilidade de todas as coisas, ao lado de um revisionismo salvador do pior que se retirou de maquiavélico do maquiavelismo – parte do processo histórico de branqueamento dos horrores da História e da malignidade filosófica – um esforço bravo de libertar a filosofia da ideologia, o pensamento dos preconceitos, compreender sobretudo o que ditou a perenidade multi-secular deste pequeno livro.
Como disse, vibrante, Jorge de Sena, num estudo vindo a público em 1963 [19], do que se trata ao estudar Maquiavel é da condenação das «hipocrisias dos moralismos e dos legalismos» simultaneamente com o «amoralismo total», «as grandezas e misérias do poder político», em suma, a «baixeza moral» dos que traduziram em falta de dignidade o pensamento daquele que teve «a coragem de colocar a política no plano de uma filosofia de acção, independentemente dos ditames e da autoridade de qualquer poder constituído, religioso ou não».
Mas mais: é que há quem esqueça ou por sistema pareça não querer lembrar, que se Maquiavel não escreveu O Príncipe exactamente ao mesmo tempo [20] em que foi redigindo os seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio – obra dedicada ao estudo da República romana – parecendo inseguro que tenha interrompido um livro para continuar o outro [21], a verdade é que é o pai dos dois tomos, nos quais discorre respectivamente sobre principados e sobre repúblicas: claro que o anti-maquivelismo tosco só sobrevive pelo eclipse desta dualidade e pela crucificação de Niccolò Machiavelli à sua obra «politicamente incorrecta», como agora passou a ser moda dizer-se e, assim, quase obnubila os Discorsi para focar – como se do seu cérebro perverso só tivesse saído ruindade – O Príncipe.
Maquiavel entrou no panorama editorial português pela porta errada. Veremos isso adiante.
Logo no princípio tudo lhe correu mal. Livro proibido desde o final do século em que surgiu, antes de ser conhecida a sua obra foram conhecidas as dos seus críticos: a censura dá liberdade aos detractores, garantindo-lhes a impunidade de não permitir que outros aquilatem directamente o que eles vituperam. O anti-maquiavelismo teve, assim, o beneplácito do «imprimatur» que a Maquiavel foi negado.
Quando finalmente O Príncipe foi dado à estampa, traduzido por Francisco Morais e editado em Coimbra, pela Atlântida, em 1935, viria antecedido com um comprometedor «artigo de Mussolini a servir de introdução», precisamente Benito Mussolini, o Ducce da Itália fascista. Não haveria pior chaga a marcá-lo, para a posteridade, de gafa intelectual.
A obra seria recolhida das bibliografias oficiais e lançadas as hostes do pensamento de raiz católica no seu encalço. O estudo de Vergílio Taborda, difundido em 1939, com a 2ª Guerra Mundial no seu alvor e as sombras nazi-fascistas a ocuparem o seu espaço vital na cultura europeia, é disso concludente exemplo.
Mas não ficaria por aí a forte corrente contra as suas ideias.
Também no campus do jurídico se travaria estrénua pugna, que passou dos corredores das elites do pensamento para o combate de rua, ao nível mesmo das insignificantes publicações. Ainda em 1953, ao enfrentar o pensamento positivista que ameaçava agora fazer escola nas cátedras e na prática judiciária, apelando em seu socorro para o valor ético do Direito Natural, um modesto estudo, oferecido pelo autor aos alunos do Colégio de João de Deus, no Porto, ante os «dias sombrios que vivemos» lembrava que «Maquiavel fez aquilo que nos nossos dias estava reservado ao positivismo jurídico: interessou-se apenas pelo direito positivo, pelo direito observável e apreensível em certo momento e em determinado lugar, relegando para o campo da moral tudo o mais que existe no mundo normativo. Ignorou portanto o verdadeiro sentido ontológico do direito que visa a realização da Justiça». Escreveu-o Manuel José de Carvalho Martins de Almeida [22].
Envolto num ambiente de contenda, Maquiavel acabou por ficar atado ao pelourinho da infâmia, as suas ideias, tanto no linguajar popular como na conceitualização erudita, associadas a uma acepção pecaminosa, simbolizando a palavra maquiavélico a urdidura do enredo enganador, a vileza da traição aleivosa, a perfídia desapiedada, em suma, o principado da amoralidade, em resumo, o diabólico. Papini, que tem o condão de resumir grandes reflexões em pequenas frases, sintetizou: «Maquiavel ficou com fama de porco por causa de La Mandragola e de canalha por causa de O Príncipe».
E, no entanto, poder-se-á dizer, como escreveu Sena, que «ele foi, antes de mais, um patriota italiano e um estadista angustiado por ver a sua Itália dividida em principados, repúblicas, estados papais, e territórios de potências estrangeiras»? Poder-se-á dizer, acompanhando de novo Jorge de Sena, um engenheiro a quem a Literatura tanto deve, que «foi, e é, um dos maiores escritores da literatura italiana; e, se compreendida e situada no tempo dele, a sua obra é a de um dos mais argutos, lúcidos e corajosos pensadores políticos de todas as épocas»? Talvez, ou nem tanto.
Eis do que se trata: de amar, odiar ou compreender este livro. Lê-lo não basta. Ele pode ser um produto do riso irónico sobre os poderosos ou o fruto de uma raiva contida sobre as suas vítimas. Manual de política ou novela alegórica? Vejamos pois, começando pelo seu autor, aproximando-nos do momento em que o escreveu [... continua...].
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[1] A Enciclopédia consigna mesmo a forma verbal «maquiavelizar», ilustrando a ideia. Cita, como texto de apoio onde o verbo fizera a sua aparição, um texto de Fialho de Almeida [Vida Irónica, VI, 393] a propósito de uma «certa viscondessa, perversa, sedutora, cortesã, tolerada nos meios honestos» a qual «maquiaveliza as mais flamejantes cenas dos três actos». O Dicionário de Moraes regista o mesmo sentido.
[2] Duas notas interessantes. Primeira, para referir que o «de ‘», sempre minúsculo é a abreviatura de «dei», antes da consoante e do «degli», antes da Vogal para fazer referência à família de que se trate; segunda, que por falar em Papas, os de ‘Medici deram origem a três. O próprio Papa Pio IV pretendeu ser membro da família, sem o ser!
[3] Circula, entre a lenda e o possível, a narrativa do sonho blasfemo de Maquiavel que, no leito de morte teria, em onírica fantasia, visto um mundo em que a turba dos pobres e dos simples caminhava para o Céu, os filósofos antigos – Platão, Plutarco, Tácito – e outras «graves figuras» da cidadania condenadas ao Inferno, porque estava escrito: «Sapitentia huius saeculi inimica est Dei». Posta em dúvida a sua autenticidade, o sonho tem servido como instrumento de cristianização do «ímpio» Maquiavel», que ante o momento de prestar contas ante um Deus que, com a sua obra ofendera, blasfemando-o pelas conveniências da política, terminara a vida mandando os políticos, de que fora conselheiro, arder nas fogueiras infernais. Trata-se de um sonho análogo, embora de sinal diverso, ao sonho de Cipião, que Cícero relata no seu Tratado sobre as repúblicas: «para todos os que conservaram, ajudaram e engrandeceram a Pátria, está guardado no Céu um lugar especial».
[4] O modelo monárquico do Papado, com a transformação do chamado «património de São Pedro» num principado, tendo à cabeça um Sumo Pontífice foi levada a cabo a partir da segunda metade do século VX quando o Papa Eugénio IV se estabelece definitivamente em Roma, em 1443, vitorioso sobre quantos pretendiam a supremacia da autoridade dos Concílios sob os concílios. A queda de Constantinopla em 29 de Maio de 1453, às mãos do Turco Maomé II, veio a abrir a porta para a supremacia da Igreja Católica, Apostólica, Romana. Dotado de exército próprio, de cerca de dez mil homens, a que acresciam mercenários, o Estado Pontifício em pouco se distinguia das outras potências temporais.
[5] Paulo IV procedeu à reorganização do Tribunal do Santo Ofício, incumbido da polícia da fé e do combate às heresias, criando a Congregação da Sacra Romana e Universal Inquisição e lançou o Index dos Livros Proibidos, por decreto de 30 de Dezembro de 1558, publicado no ano seguinte. Nele todas as obras de Maquiavel, de Rabelais e de Erasmo de Roterdão eram referidas como de leitura vedada. Com o Concílio de Trento, em 1564, foi elaborado um segundo catálogo de livros proibidos [Index librorum prohibitorum a Summo Pontifice] e mantida a interdição sobre obra de Maquiavel.
[6] Antonio Gramsci, Note sul Machiavelli sulla Politica e sullo Stato Moderno, Torino : Editori Riuniti, 1971. A visão apreciativa de O Princípe havia sido considerada criminosa na União Soviética: Lev Kamenev [1883-1936] traduziu em 1934 o livro para russo, citando-o como um percurso das análises de Marx, Engels, Lénine e Stalin. Tal ousadia e outras afins custar-lhe-iam a vida, acusado em 22 de Agosto de 1936 por Andrei Vyshinsky, o Procurador soviético, quando do seu julgamento no quadro das grandes purgas estalinistas. «Que os cães enraivecidos sejam mortos a tiro!» pediu Vyshinsky, nas suas alegçaões finais! E foi.
[7] Benito Mussolini, Preludio al Machiavelli, revista Gerarchia [órgão oficial do movimento fascista italiano], Abril de 1924.
[8] Falecido com pouco mais de trinta anos, Vergílio Taborda escreveu, ainda como estudante, um estudo intitulado Maquiavel e Antimaquiavel, que a editora Atlântida editaria em 1939 e que mereceria uma nota prévia de Francisco Morais, Manuel Lopes d’Almeida e Paulo Quintela. Citando como seu mestre Gonçalves Cerejeira, Cardeal Patriarca desde 1929, e que é um dos mais lídimos pensadores da doutrina católica, Taborda regista que desde a segunda parte do século XVI e por todo o século XVII «os contraditores de Maquiavel são aqui legião, da rosa-dos-ventos do saber: teólogos, canonistas, filósofos, políticos, juristas, diplomatas, clérigos, laicos, nobres e plebeus».
[9] Recebera o prémio de Ciências Económicas da Revista da Faculdade de Direito, comemorativo do seu cinquentenário, por ter escrito um trabalho sobre A Doutrina Social da Igreja, editado em 1965.
[10] Em 1968 publicara, para além de um opúsculo sobre o erro em Direito Penal, o livro Para a História das Ideias Políticas em Portugal (Uma carta do Marquês de Pombal ao Governador do Maranhão em 1761).
[11] Martim de Albuquerque, Maquiavel e Portugal, Estudos de História das Ideias Políticas, Aleteia, 2007
[12] A Sombra de Maquiavel e a Ética Tradicional Portuguesa. Trata-se – no dizer de João Bettencourt da Câmara, no seu estudo que citaremos sobre a primeira edição portuguesa de O Príncipe – de uma «magistral investigação (e arqui-polémica tese)».
[13] Estudo publicado na revista Esmeraldo [2, páginas 9 e seguintes]. Joaquim Veríssimo Serrão, à data director do Instituto, revela, no seu «prefácio» à obra, que, sendo o autor filho do Professor Mário de Albuquerque, «mestre jubilado na Faculdade de Letras de Lisboa», o estudo em causa era «fundado num estudo de cintilante intuição de seu Pai». Na «Nota Prévia» desta sua tese Martim alude à identidade do tema e intencional homonímia do título, citando-o como ponto de partida da sua investigação; o labor hoje por si continuado e ampliado, mantém o mesmo ânimo militante.
[14] Martim de Albuquerque retoma-os ao falar no «número infinito de interpretações» que o pensamento de Maquiavel suscitou, comentando que se tornou «verdadeira selva a temática em volta de Maquiavel», menciona Berlin como fonte dessa recolha [nota de rodapé 19 à primeira parte]
[15] Benedetto Croce, Elementi di politica, Bari, 1925, 62.
[16] Roberto Ridolfi, Vita di Niccolò Machiavelli, Sansoni, Fizenze, 1978.
[17] Isaiah Berlin, num seu texto de 1979 sobre a originalidade de Maquiavel recuperado para a colectânea, editada pela Bizâncio em 1999 (sob a coordenação de João Carlos Espada) conta 3 000 estudos publicados até 1972.
[18] Cito o seu pequeno artigo sobre «maquiavelismo», publicado na «Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura» [volume 18, editado em 1999, página 1188]. Nele, Ruas resume o seu pensamento quanto à distinção [que julga deve ser feita também em relação a Karl Marx] entre o teorético e o doutrinário: «Maquiavel foi vítima de uma cilada que ele próprio montou». Já Veríssimo Serrão anotara, ao prefaciar a obra de Martim de Albuquerque: «Foi voga desde o século XVI citar Nicolau Maquiavel e abusar do seu nome e mensagem para explicar situações que nada têm de “maquiavelismo”. As correntes ideológicas levaram à deficiente aplicação desse conceito, criando uma perigosa vizinhança com interpretações que não promanam da fonte autêntica de Maquiavel».
[19] Sena escreveu sobre O Príncipe um estudo que publicou, tal como um outro sobre O Capital, de Karl Marx, para o volume colectivo intitulado Livros que abalaram o Mundo, publicado em 1963 pela editora Cultrix, de São Paulo. Em 1974 a Livraria Paisagem dá-lo-ia à estampa, num volume a que chamou «Maquiavel e outros estudos», que o próprio autor de «Sinais de Fogo» prefaciara em Maio de 1973, ainda em Santa Bárbara, na Califórnia.
[20] A questão da cronologia nas obras de Maquiavel é controversa e a da articulação destas duas obras ainda o é mais. A tese tradicional, segundo a qual a partir de 1513 Maquiavel se teria desdobrado na escrita de ambas, terminando os Discorsi em 1519, encontra hoje cada vez menor apoio, apesar de Gilbert, em 1953, ter sustentado que pudesse ter existido um tratado sobre as repúblicas, escrito por Maquiavel anteriormente à redacção de O Príncipe, pois no início do segundo capítulo desta obra refere que sobre as repúblicas não falará aqui pois que «altra volta ne ragionai a lungo» [já discorri demoradamente numa outra vez]. Mais recentemente, uma outra teoria tentou, acentuando o carácter incompleto e fragmentário dos Discorsi, demonstrar que a sua pré-existência relativamente a O Príncipe não exclui que Maquiavel, após a sua redacção não tivesse continuado a trabalhar naqueles, uma vez que não parece curial que a menção com que se inaugura o referido capítulo II fosse ao texto dos Discorsi tal como o conhecemos actualmente. Mais: as condições de penúria em que Maquiavel escreveu O Príncipe e o carácter instrumental da obra como tentativa de obter apoio dos de ‘Medici são pouco compatíveis com a ideia de que ele «se afadigasse, com ou sem Livio, um belo tratado sobre as repúblicas» [Dionisotti, obra citada infra, 255]
[21] Ugo Dotti, Machiavelli Rivoluzionario, Carocci, Roma, 2003, páginas 309 e seguintes enuncia as teses que se perfilam sobre a compatibilização cronológica entre as duas obras.
[22] Trata-se de um breve estudo intitulado Direito e Estado em Maquiavel. Inspirado no pensamento do professor Cabral de Moncada expresso numa oração de sapiência proferida na Faculdade de Direito de Coimbra em 1945.