30.6.12

Trágico sinal e fatal Destino

Aos poucos vou juntando aos que tenho aqueles que encontro nas Bibliotecas. Neste caso veio por empréstimo. Tento depois achá-los nos alfarrabistas. Não pela lubricidade da posse de serem meus, mas sim porque temo que quando os quiser voltar a ler os não encontre. E depois há aqueles desejos inesperados de ir ao encontro daquele excerto que se leu, daquela informação de que se precisa. 
Em rigor apenas careço ter para fruição constante uma biblioteca, por isso acabo por ser em relação aos livros que a integram forçado proprietário.
Desta feita foi uma colectânea de dispersos de Leonardo Coimbra, uma vez mais compilados por  Pinharanda Gomes, que já havia organizado para a editora Verbo, sob o apadrinhamento de João Bigotte Chorão, vários volumes com a mesma natureza e do mesmo autor.
Estes têm uma vertente interessante. Recolhem o dito e o ouvido e que a imprensa reproduziu e seguem a fita do tempo e assim a vida interior do magnífico tribuno. Por ali se alcança a sua evolução espiritual, ele que, nos primórdios do republicanismo afirmou, gerando ondas de incompreensão - e na rebentação das tempestades que gerava vogava sempre mais ousado, o Céu como limite - que se para ser republicano tivesse de ser ateu não seria republicano.
Como se sabe a questão da sua "conversão" à Igreja Católica ainda hoje abre lugar a ser questão, num mundo binário em que se é por Deus ou contra Deus. É que, estando em presença de um ser tumultuoso, aquele encontro sacramental com o Padre Cruz, seu confessor, não é que pudesse ser parte de um caminho cuja trajectória viesse a alterar; é que nunca seria nele a vulgar submissão ao que muitos se vergam, a dogmas tidos por intemporais, a catecismos de discutível vigência, à pobreza da prática ritualista e suas ladainhas sem o exaltado orar da plenitude do coração.
À sua conversão, que segundo as suas palavras «não foi obra de uma ilusão sentimental, nem de leviandade, nem de oportunismo ou coacção de espírito», seguiu-se o «matrimónio eclesial». 
Tudo ocorreu vivendo a tragédia de um filho em congestão pulmonar há meses.
Insólito Destino. Por lapso o assento de casamento, ministrado pelo Pároco de Cedofeita, a 23 de Dezembro de 1935, foi lavrado no Livro de Óbitos da Paróquia de Santo Ildefonso. Símbolo fatal: dias depois, um desastre de automóvel levá-lo-ia ao encontro com a morte. A 1 de Janeiro de 1936 escreveria num apontamento que a Universidade Católica do Porto guarda: «Meu Deus! Com o coração inquieto mas a inteligência serena faço-Te esta súplica: Se a doença do meu filho tivesse de ser fatal, aceitai a minha vida por a dele e só Vo-la peço até o educar e poder deixar o indispensável a minha mulher».
É regra: aquele que quer o que Deus quer, de Deus recebe. Morreria no Hospital de Santo António do Porto. O Conde de Aurora dele escutaria as última palavras: «Ofereço minhas dores a Nossa Senhora, pelas melhoras do meu filho».

16.6.12

A fisionomia do lugar

É um outro mundo aquele que se encontra quando se largam as amparas do positivismo, mundo de profundidades, em que o intelecto se densifica pelas grutas de onde escorre a nascente primordial dos mares discursivos, mundo de planuras em que, alada, a consciência sustém a respiração para que se não perca a milagrosa sensação do que é novo.
Mundo em que não só o cérebro mas a totalidade do ser são convocados para a aventura da descoberta do outro e de si mesmo, em que o silêncio e o recolhimento são formas última de reflexão, lugar místico de interiorização do todo através da redução ao nada.
Pressenti tudo isto ao ler esta manhã algumas páginas do livro Da Urbe do Burgo, colectânea de artigos que entre 1960 e 1970 publicou no jornal O Primeiro de Janeiro. A cidade do Porto dá contexto aos escritos que, no entanto, seguem para além desse acanhado referencial.
Poucos repararão que a esta figura polémica e polemizante se deve, em colaboração com Raúl Proença, seu criador, a conclusão dos tomos Guias de Portugal, editados pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Pois foi aí que o li. Quando saí, restituído à pequena floresta em que se substancia o seu jardim, parámos extasiados, a vê-la, vigilante, uma compenetrada pata, aquele bamboleante andar característico de palmípede, a seguir o irrequieto debicar marchante da sua ninhada. 
«Um terreno, quanto mais duro e ingrato, mais propício é à aparição, aparentemente teratológica, de uma realidade prodigiosa», escrevera ele, porque o milagre tem a fisionomia do lugar, sobre a «fogueira espiritual» que os da Renascença Portuguesa haviam lançado sobre Portugal, a partir do meio «sonolento e húmido» do Porto.

13.6.12

Dionísio & Leonardo

Trouxe três da Biblioteca Pública. São sobre Leonardo Coimbra, escritos por Sant'Anna Dionísio. O primeiro, opúsculo, escrito a 15 de Fevereiro de 1936 e lido em Vila Real, ampliado, na versão que estou a ler, para uma segunda leitura na Casa da Imprensa e do Livro a 31 de Março desse ano. Edição inicialmente de autor, depois sob a chancela da Livraria Chardon de Lello & Irmão, Editores, publicado em 1983. O segundo, mais extenso, em oitavo, tirado nesse mesmo amo, não querendo ser uma homenagem, é antes acto de dedicação espantada ante o pensamento do Mestre. O terceiro, editado pela Imprensa Nacional dois anos depois, é obra de tomo, biográfica e analítica.
No alfarrabista João Soares encontrei na montra dois, comprei um, com a nota de vinte que trazia, trazendo cinco de troco, a amabilidade impagável. É sobre o Porto, onde tudo se passou neste dia, feriado em Lisboa. Chama-se Da Urbe e do Burgo.

P. S. O desenho que o retrata, ao autor de Pensamento Invertebrado, é de Carlos Carneiro.

7.6.12

Os lugares inferiores: o dito e o inventado (4)

É mais um excerto, o quarto, do texto que escrevi para a apresentação de O Príncipe de Maquiavel. Nesta parte um sobrevoo pela obra.
 
Deste livro tem-se amiúde feito tudo menos lê-lo; e muitos dos que o leram tresleram-no.
O primeiro equívoco resulta logo ante o título, pois é enganador, parecendo tratar dos que têm sangue azul, quando se refere, afinal, àqueles que governam pelo mando próprio, sem assembleias que os tolham, ou seja, por uma forma que se chamaria não republicana de governar. É que a nomenclatura mudou muito desde então[1], tal como o próprio nome do livro: na versão inicial Maquiavel chamou-o De principatibus [acerca dos principados] e só depois o nome terá passado a ser aquele pelo qual é conhecido presentemente. Maquiavel trata aqui dos principados como em outro momento tratou das repúblicas; e não ignora, como escreveu num outro texto Sobre a Reforma da Constituição de Florença, minutado a pedido do Papa Leão X, que «as monarquias sólidas são aquelas em que a deliberação é de muitos e a execução de um».
Para um leitor que se proponha lê-lo, vale a pena deixar breve apontamento sobre aquilo de que se trata, não sem antes notar que Maquiavel tinha pensado, como exprimiu na já tão citada carta a Vettori de 10 de Dezembro de 1513, dedicar a obra a Giuliano de ‘Medici [1479-1516], filho de Lorenzo «O Magnífico», duque de Nemours, um «príncipe novo», que havia restaurado o domínio dos Paleschi em Florença; mas, morto aquele, o livro acabaria por surgir com uma extensa dedicatória «ad Magnificum Laurentium Medicem», o jovem Lorenzo (Júnior) [1492-1519], filho de Piero de ‘Medici, neto de «O Magnífico» seu antecessor homónimo, sobrinho do Papa Leão X, que seria duque de Urbino em 1516.
A obra está dividida em vinte e seis capítulos, cada um com o título em latim. A sistemática não é muito coerente, mas nisso não diverge do que era uso na época: a princípio parece que se vai seguir um certo rigor académico, porque nela se aborda, no início, de quantas espécies são os principados e de que modos se adquirem, para se seguir um capítulo II sobre os principados hereditários e outro, o III, que trata dos principados mistos. Sucede que este ordenamento sistemático só é retomado no capítulo IX, onde se fala do principado civil, saltando-se para o capítulo XI referente aos principados eclesiásticos. Pelo meio fica a sombra assistemática de capítulos de título tão descritivo como o IV, chamado extensamente «porque razão o reino de Dario, conquistado por Alexandre, não se rebelou contra os sucessores deste», ou o capítulo V, intitulado «de que modo haverá de governar as cidades e os principados que, antes de serem ocupados, viviam com leis próprias». Mas descontemos este desalinho que foge aos cânones do silogismo aristotélico, em que as metáforas naturalistas surgem como forma de expressão de verdades que o livro pretende sugerir e a que o carácter aberto de alguns dos conceitos operativos utilizados retira rigor e objectividade. O estilo é, sobretudo no capítulo final, como alguém já referiu, a tradução literária do «pathos ardente» do seu pensamento, a argumentação persuasiva de uma causa, mais do que uma expressão fria e cerebral.
Do ponto de vista da lógica discursiva do respectivo enunciado, O Príncipe procede por um caminho mais ou menos uniforme: formula leis gerais, à guisa de conselhos, e apoia a sua demonstração em exemplos históricos que legitimam a sua verdade, numa lógica de prova pragmática.
Em termos contemporâneos, a leitura ressente-se: um leitor menos ilustrado tende a passar adiante a exemplificação erudita, até por não ter elementos de cultura histórica suficientes para infirmar as teses que nesses exemplos se apoiam, e prossegue como se caminhasse por sobre pedras em profundo rio, saltando de proposição em proposição, anotando das frases as mais sugestivas, nem sempre as mais inteligentes. Está aqui um risco que tem perseguido esta obra, como aliás este estilo: é que o refinamento literário ocorre no subtil modo de dizer, por vezes o denso pensamento escondido numa frase discretíssima, como a de Cipião quando disse haver no Senado romano «muitos homens que sabiam melhor não errar do que corrigir os erros».
Vejamos pois, brevemente, do que se trata em cada um desses momentos do livro.
A lógica da exposição é que a vida política pressupõe que, quem nela quiser agir, saiba que a inteligência e a perícia de um homem de Estado passa por, sendo activo, deixar pouco ou nada ao acaso; que fundamente o seu agir futuro no conhecimento do que foi o passado; que saiba, em suma, «intelligere» antes de «agire». 
Mas que tipo de agir é este? Um agir que consiga a adequação da inteligência à força, à própria violência, que saiba que o próprio Moisés foi, para o sucesso do seu empreendimento, constrangido a cometer os massacres que a Bíblia refere[2], em suma, uma política cujo fundamento de legitimação não seja uma qualquer teologia, ou outra abstracção moral que a situe entre o bem e o mal, mas sim uma acção em perpétuo movimento cuja verdade seja, eis o critério legitimador, a avaliação dos efeitos que consegue alcançar, a verità effetuale.
Na conformação desta sua visão entram em inter-jogo dois dos pilares de sustentação da vida que estão omnipresentes no seu modo realista e, por isso, irónico de pensar: a «fortuna» e a «virtude». Se uma é o acaso e a sua sorte, a outra é o reino da vontade humana e seus méritos.
Claro que no esforço de exemplificação demonstrativa, Maquiavel encontra dificuldades tremendas, que no seu tempo deviam ser ainda mais ingentes, como no capítulo VII – dos principados que se conquistam com armas e fortuna alheias – onde apresenta Cesare Borgia, nas facetas positivas da sua biografia, quando ainda pairava na memória dos seus contemporâneos, uma outra recordação, a ensombrar-lhe a efígie. «Principe sceleratto e nefario» não são atributos com que sejam marcados, como se com ferrete de ignomínia, a sua vida e obra, pois que tais adjectivos ficam reservados, no capítulo VIII, para qualificar a obra dos príncipes Agatocle [360-289 AC], o tirano de Siracusa, e Oliverotto Eufreducci, mandado matar pelo Bórgia. É o capítulo VIII que deve ter ficado, até pelo seu título, mais no ouvido dos leitores, ao tratar «daqueles que, pela perfídia, alcançam o principado». Enuncia-se aí uma regra, a de justa proporção entre a distribuição do mal e do bem, pela qual o «usurpador» - e eis aí o destinatário da sua fala – deve fazer o mal de uma vez e o bem aos bocadinhos.
Mas que o livro não se destina a consumo de um só tipo de principesco leitor demonstra-o a circunstância de o capítulo IX ser dedicado ao principado civil, ou seja, àqueles casos em que um simples cidadão – note-se que nem sequer por linhagem aristocrática – se torna príncipe da sua pátria «não por perfídia ou outras formas de intolerável violência, mas com o apoio dos outros cidadãos», não por «excepcional virtude ou rara fortuna, mas mais por uma espécie de afortunada astúcia».
Esta forma de principado é gerada ou pelo povo ou pelos poderosos, pelo que nesta parte do livro o que se compendiam são as regras pelas quais uns e outros se conseguirão compatibilizar. Trata-se de «um príncipe dispor de um povo amigo», para que este o não abandone, sendo então os príncipes «honrados e amados» e sobretudo de ter em mente que as crises surgem quando tais principados passam «da ordem civil para o poder absoluto». É o capítulo IX, nesta parte, triplamente exemplar: primeiro, porque demonstra com clareza a natureza do conceito de «príncipe» de que se trata aqui – realidade plural tanta vezes desconsiderada como tal – depois, porque foca o modo de obter e de conservar o poder, tudo nos antípodas do odioso e do celerado a que Maquiavel surge amiúde associado; enfim, porque pensado para que os de ‘Medici o lessem, o livro contém nisto um aviso quanto aos perigos que decorrem de um poder absoluto, sobretudo quando exercido «através de ministros»: teórico da «commune libertà», eis o Maquiavel que nos surge aqui, longe daquele teórico da força e da perfídia a que muitos o reduzem. Só assim, pelo concitar do apreço e não por impor o odioso, se entende a conclusão do capítulo, referente ao modo como se devem medir as forças de todos os principados: «um príncipe que tenha uma cidade fortificada e se não faça odiar não pode ser derrubado pela força».
Chegados aqui, pensamos que continuar ultrapassaria os propósitos de uma apresentação.
O leitor, se tiver ficado convencido e sobretudo se tiver alargado a visão com que lerá o livro, prosseguirá capítulo após capítulo, uns atípicos e aparentemente fora do tempo, descarrilando do fio condutor da exposição, outros de leitura absorvente, até pela sua actualidade. Como não reconhecer o presente quando se lê no capítulo XXII, acerca dos ministros que rodeiam os príncipes: «o primeiro juízo que se faz acerca da inteligência de um gentil-homem resulta daquilo que transparece das pessoas que tem em torno de si»; ou, quando no capítulo seguinte enuncia a «regra que nunca falha», aquela segundo a qual «um príncipe que não seja sábio por si próprio não pode ser bem aconselhado»; ou, quando, no capítulo XXV, proclama que «um príncipe que se apoia exclusivamente na fortuna está sujeito à ruína, conforme ela varie»? Eis O Príncipe. Tentámos animar o leitor a descobrir o concretamente dito por quem o escreveu e a prevenir-se quanto ao inventado pelos que não gostaram do que foi escrito, livrando-se desses locais inferiores que são os da interpretação falsificadora porque militante. Niccolò Macchiavelli, que o escreveu, deixou nele o que poderia ser o seu epitáfio: «é perfeitamente possível ser-se temido e não odiado». No seu caso, os que o odeiam, ainda hoje, quase cinco séculos depois, é porque o temem. Se calhar teria razão Villari quando, sentido o homem e compreendida a totalidade da obra, concluiu[3]: «jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel».



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[1] Um espírito britânico como o de Lucille Margaret Kekewoch [na edição inglesa deste livro publicada pela Wordsworth] estranha, por isso, que em vez de tratar de três espécies de Estado – monarquias, aristocracias e democracias – e das suas perversões – tiranias, oligarquias e anarquia – Maquiavel trate de principados e repúblicas. Moncini entendeu bem que no pensamento do Secretário a distinção entre as repúblicas e os principados é menos essencial do que a que leva a distinguir Roma, Esparta, Veneza, Florença e outras cidades-estado.

[2] A menção ao argumento consta dos Discorsi, III, 30,2.

[3] Pasquale Villari compendiou em três volumes, editados pela Le Monnier, entre 1887-1882, um estudo sobre Maquiavel: Niccolò Machiavelli e i suoi tempi. Uns anos depois [1883-1911] Oreste Tommasini editaria o seu La vita e gli scriti di Niccolò Machiavelli nella sua relazione col machiavellismo, saído em Roma, pela Loescher.