5.5.12

Maquiavel: escrever para parecer vivo (2)

Continuo a publicação do que escrevi em 2008 para a apresentação do livro O Príncipe de Maquiavel. É a segunda parte desse texto. Divulgo-o para que possa ser lido pelos que não quiserem ignorá-lo.
Estamos no dia 7 de Novembro de 1512, em Florença.
O Secretário da Segunda Chancelaria, cumulativamente Secretário dos Dieci di Libertà, organismo incumbido da defesa da cidade, Niccolò «Machiavegli» - como assinava então – é informado pela Senhoria que perdeu os seus lugares, estando deles exonerado, sendo substituído por um também Niccolò, mas Michelozzi, de quem não reza hoje a História.
Mudara o regime que governava a cidade, os de ‘ Medici haviam regressado em força, depois de dezoito anos de exílio [1].
Piero Soderini, o gonfaloniere [2] vitalício, cabeça da ordem política agora caída, vira ser-lhe retirado, num primeiro momento, essa perenidade do cargo, para ser depois substituído por Giovan Battista Ridolfi. A sua tibieza, a incapacidade de lidar com os graves problemas do seu tempo, o facto de ter consentido a realização do Concílio cismático de Pisa – evento animado pelo Rei Luís XII de França e que levou à queda do Papa Giulio II – foram a causa da sua desgraça.
Niccolò, considerado um «mannerino» do deposto, um instrumento da sua política, teria de seguir-lhe os passos.
A estrutura do mando é profundamente alterada.
Tanto Maquiavel como o seu dilecto coadjutor, Biagio Buonaccorsi, sabem que a sua posição está em causa. Aqueles que haviam servido estão apeados.
Para o autor de O Príncipe nasce aqui a grande lição de vida, a confirmação do essencial da sua filosofia, o que faz dele, séculos volvidos, o mestre observador da arte da política: a bondade, a generosidade, a tibieza, o escrúpulo moral são, na política, instrumentos inúteis.
Comentando, em um dos seus Discorsi, o comportamento daquele seu senhor, agora caído, censura-lhe a paciência e a bondade de alma e, sobretudo, o ter seguido os «humores da multidão», preterindo os conselhos dos «homens sábios», franqueando as portas aos seus adversários; ao não ter tomado as medidas extraordinárias que a situação exigia, perdera a Pátria, o Estado e a sua própria reputação.
O regime que servira caíra ante a sua «incapacidade de fazer mal» [3]: eis, nesta apologia do mal, neste desprezo pela inocência do bem, nesta ênfase do conselho da aristocracia dos sábios, neste relegar dos humores da multidão, a estrutura resumida do que pensava Maquiavel sobre o modo como deve agir o político, para que possa conseguir sucesso, no meio hostil em que tem de sobreviver.
Maquiavel conhece o terreno que pisa e tenta seguir os seus próprios conselhos, serve-se da lisonja, essa perfídia dos fracos. É por isso que, astuto, mesmo já apeado e com a desgraça a bater-lhe à porta, tenta exprimir o seu «obsequioso respeito» pelos novos senhores, manifestar a esperança abonatória em que a «quietíssima cidade» pudesse continuar a viver tão honrada agora que era governada por estes «magníficos» de ‘ Medici, como sucedera quando fora governada pelo antecessor dos novos senhores, o excelente Lorenzo, falecido em 1492.
Só que é tempo de perseguição e nem a adulação lhe vale como escudo ou como espada. No dia 10 o Secretário fica a saber que lhe é proibido ausentar-se do domínio florentino e que fora condenado a uma multa de mil florins; uma semana depois, a 17, é vedada durante um ano a sua entrada no Palazzo Vecchio, onde servira; até 10 de Dezembro sofre ainda uma ignominiosa investigação ao modo como administrara o dinheiro destinado ao pagamento da milícia florentina. A Justiça sempre gostou de se mostrar forte com os fortes enfraquecidos.
Inicia-se assim um tempo de exílio, que virá a agravar-se no ano seguinte: as ideias deste homem irão castigá-lo através da penitência física, pela dor e pela privação.
Aquilo que havia sido a hipocrisia ao serviço da vida diplomática e da manutenção da sua carreira, como servidor dos interesses de Sua Senhoria, tornar-se-á razão e sistema, a vida sofrida, mestra.
Uma conjura, em que são dados como envolvidos Agostino di Luca Capponi, Pietro Paolo Boscoli, Niccolò Valori e Giovanni Folchi, move-se contra os de ‘ Medici, o assassínio do Cardeal Giovanne pensado pelo bando como um meio cristão de livrar a cidade do que consideram ser um dos fundamentos da tirania.
As autoridades descobrem-na e o nome de Maquiavel é encontrado numa lista que um dos presos supostamente teria perdido. À demissão, à fixação de residência, à condenação em multa, segue-se agora a prisão.
Ausente de casa, as autoridades tinham lançado editais ameaçando com pena de confisco e por rebelião os que sabendo onde ele estivesse não o denunciassem em uma hora e conseguiram assim, pelo medo, que não pela recompensa, deitar-lhe a mão.
Tudo se lhe muda do dia para a noite. Perdido o conforto das antecâmaras do poder, segue-se agora o sofrimento da cadeia e, com ela, vinte e dois dias de cárcere e de tortura, dias horrendos, de ferros e correntes, passado pelas cordas várias vezes, temendo pela própria vida, como escreveu a 26 de Junho, numa carta ao sobrinho, o mercador Giovanni Vernacci, filho de sua irmã Primavera, na altura comerciante em Istambul.
Pietro Boscoli e Agostino Capponi são condenados, pelos Otto [di Guardia], à morte por decapitação, sofrida a 23 de Fevereiro. Da sua cela, as pernas atadas, Maquiavel segue-lhes os últimos momentos, os cânticos fúnebres, intui o golpe de machado que arrancou a cabeça a Pietro, as duas machadadas que foram necessárias para a separar do corpo do infeliz Agostini, como se a vida quisesse demonstrar, simbolicamente, aos seus ineptos carrascos, quanto essa incapacidade de o matarem era sintoma de uma inocência que até ao fim proclamara.
Incerta a sua responsabilidade, Maquiavel continua preso e é sujeito a tortura para que confesse. Sofre o suplício de seis tratos de corda, o polé, içado e solto em queda livre, quase a pontos de se desmembrar, as costelas se lhe rasgarem, a dor o fazer vergar, dizendo assim a verdade ou a mentira, qualquer coisa que satisfizesse, enfim, os juízes, sossegando-lhes a consciência punitiva pré-formada. Porém, resiste, ironizando com a miserável condição em que se encontra, loca infecta, a que ele por ironia chama, num verso entretanto escrito, a poesia como companheira, o «sì delicato ostello» .
Preso por ter traído os de ‘ Medici, Maquiavel vai ver os seus tormentos terem fim, paradoxalmente – ironia do destino – por causa do aumento de poder da poderosa família dos “Palleschi”, nome que lhes adveio por causa das bolas que ornam a sua cota de armas, símbolo heráldico dos seus: com a aproximação da Primavera, a 12 de Março do ano de 1513, a cidade comemora a eleição de mais um Papa, mais um de ‘ Medici, Giovanni, segundo filho de Lorenzo, «O Magnífico», que ascende com o nome de Leão X, substituindo Giulio II no trono de São Pedro.
A cidade entra em festa para celebrar o evento, um autêntico carnaval vive-se por cinco dias nas ruas, nas casas e nos palácios, muitos no sonho delirante da paz perpétua, outros pelo simples gozo venal do contentamento pagão. Os florentinos imaginam já as benesses que podem cair-lhes do céu com um Papa a que podem chamar seu.
As prisões abrem entretanto as portas, a velha superstição de que dar liberdade liberta. Maquiavel é solto.
Salvo da má fortuna, este homem sabe que os corredores do poder, de que fora funcionário, estão para trás. Expulso da cena palaciana resta-lhe, por cautela, retirar-se. Mas não desiste. Servir os grandes, tornando-se-lhes útil é, afinal, a sua biografia. Usa, para tanto, a única força que tem ao seu dispor – escrever – e a única forma como o sabe fazer – a ironia.
Ainda na cadeia, Maquiavel não baixara o nível da esperança. Estudiosos da sua controversa vida situam dois sonetos, uma canção («Se avessi arco») e um «Capítulo Pastoral», como tendo sido escritos naquelas adversas condições carcerárias, na ânsia de obter a graça do «Magnífico Giuliano», irmão do Papa.
Textos inesperados, eles são a melhor demonstração de uma ambígua personalidade em que, naquele ambiente de incerteza, diminuído pelo medo, minado pelo sofrimento, não o abandona o riso de altivez que o aproxima, aos olhos de tantos, do velhaco calculista e do lisonjeador interesseiro.
A poesia, com a sua capacidade de concentrar em imagens conceitos extensos é, por ventura, o melhor auto-retrato da sua pessoa. E o que escreveu sobre a sua condição de preso, o que deixou sobre a execução de Boscoli e Capponi, é a demonstração do que sente quando pensa: «(…) dormindo à beira da aurora/cantando ouvi dizer: “Por vós se ora”/ ora, que vão em paraem boa hora», é o modo como se refere ao momento em que o carrasco leva para a morte os seus companheiros de infortúnio.
Para que os de ‘Medici saibam que, nada o ligando aos conjurados, a execução destes não lhe afecta sequer a consciência, faz-lhes chegar mãos, aquele verso cínico: «vadin in buona ora»,
Sofrido o cárcere, eis uma natureza que a privação da liberdade moldara e que se vai refinar agora, lançado ao desprezo, o ócio dando-lhe oportunidade, os áureos tempos antigos apontando-lhe o horizonte, o imaginário de grandeza passada tornando-o paradigma do cinismo na acção, a mofa uma forma de mentir com a verdade, de confundir o mal que aconselha com a maldade de que parece mero observador.
Tudo surge a seu tempo.
De homem de acção transforma-se em pensador, sendo a maioria dos seus escritos anteriores relatórios das actividades diplomáticas. Publicara, é certo, o que poderia passar por poesia pura, as suas primeiras Decenais, sob o título de Nicolai Maclavelli florentini compendium rerum decennio in Italia gestarum, 183 tercetos escritos em quinze dias, obra que era uma narrativa laudatória dos acontecimentos vividos entre 1494 e 1504, estando o autor ao serviço do governo de Soderini e do seu projecto de Ordinanza florentina.
O mundo mudara. A política que servira não o quer. A pena é a sua companhia, a necessidade a sua única virtude. Ante a tragédia, o sorriso. Há que escrever, mas a anteceder qualquer outra escrita, a que permita viver.
É pela necessidade que, logo no dia 13, escreve ao seu amigo Francesco Vettori [4], designado, desde 30 de Dezembro de 1512, Embaixador [«oratore»] da República junto da Cúria, em Roma, rogando-lhe que interceda por si e pelo irmão Totto.
A vida havia-os separado. Vettori vive uma vida prestigiada, cortesã, despreocupada, lamentando apenas a ociosidade e o ter de auto-conter-se na sua postura que, não fossem as conveniências, seria libertina e irresponsável; Machiavelli conhece agora a penúria, o confinamento, a luta pelo pão, a ausência dos círculos onde se movera e de meios para gozar a boa vida, em breve estará retirado para a pobreza rural, local onde tenta, escondendo a sua diminuída pessoa, salvar-se do desdém com que outros o possam olhar.
A carta [5] é um acto de contrição, um lamento, uma forma submissa de pedir. Maquiavel promete ser mais cauteloso e espera que os tempos novos sejam mais liberais e menos suspeitosos. Roga que o irmão seja colocado entre os «familiares» do Papa de ‘ Medici e com isso beneficiado. Para si próprio suplica que o Sumo Pontífice, ou os seus, o possam aproveitar em «qualche cose». A humildade na forma de pedir mostra a que ponto a necessidade já enfraquece o orgulho.
Escreve de novo, cinco dias volvidos, ao seu amigo «Magnifice Orator», respondendo à missiva que, entretanto, recebera daquele a quem pedira ajuda e que, cauteloso, se mostra parco em prometer [6].
Sem possibilidade de subsistir na cidade, jogando na prudência de não espicaçar a sorte, Maquiavel retira-se para a sua modesta propriedade em Sant’Andrea, localidade de La Strada, na Percussina, junto a San Casciano in Val di Pesa, na Toscânia, enfrentando a paz agreste do exílio.
Dali escreve, a 9 de Abril, uma nova carta a Francesco, a qual assina, contristado, como «Niccolò Machiavelli, quondam Secret.» [outrora Secretário]. É um Maquiavel desalentado, que se conformou com «não desejar coisa alguma com paixão» mas que tenta, com afectuosa cortesia, não se mostrar excessivamente decaído na sua desgraçada fortuna.
Uma semana depois o seu estado de alma deteriora-se. A família, extensa, a expensas suas, é agora um espinho de preocupação, todo o mal parece confluir ao mesmo tempo. Conta a Vettori o que passa e pede-lhe que não se iluda com a aparência risonha com que parece enfrentar o infortúnio. Di-lo em verso triste: «Mas se por vezes rio ou canto /Louco porque só tenho esta /Via para aliviar o meu amargo pranto».
É aí, no seu Albergaccio [7], durante o quente Verão, na frugalidade da vida rústica, que começa a redigir o que viria a ser este livro, embora sucessivamente, como dirá, «io lo ingrasso e ripulisco». Muitos dos pensamentos que nele se consagram elaborou-os na correspondência com Francesco Vettori, «patrono e benefactori suo», onde, a par com trivialidades do dia-a-dia, insistindo sempre em que algo este lhe encontre que lhe permita reencontrar o seu sustento e o dos seus, trata, com largueza, temas políticos de estratégia diplomática e militar.
Aprendera, com a má sorte, a arte de saber resistir, a trocar a vida pelo «parere vivo», como dirá numa carta de 29 de Abril [8].
Em suma: ao escrever O Príncipe Maquiavel visava um pequeno e interesseiro propósito, a sua reaproximação aos de ‘ Medici. Mas, sem o saber, revolucionou o mundo das ideias, que são a mãe de tudo o que existe. Não conseguindo o pouco que queria – a mediania do seu emprego de Secretário – guindava-se ao panteão da História dos grandes vultos.
A sua memória ficou prisioneira desse livro; julgamos conhecê-lo através dele. É um erro.

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[1] Sobre os de ‘Medici é extensa a bibliografia, superior a cinco mil títulos. O leitor português encontrará, como curiosidade, a biografia superficial da família escrita por um seu descendente contemporâneo, curiosamente também Lorenzo de ‘ Medici. A obra está traduzida em português sob o título Os Médicis, a nossa história, e foi publicada em 2003 pela D. Quixote. Curioso o porquê da escrita: «vendidos os palácios, fechadas as grandes casas de campo, nós, os membros da última geração, sabemos muito bem qual é o nosso dever: manter vivo um nome do qual julgamos poder estar legitimamente orgulhosos».

[2] O governo de Florença era então confiado bimestralmente a nove cidadãos eleitos com o título de «gonfaloniere» [gonfaloneiro em português]. Piero Soderini [1452-1522] sê-lo-ia por designação vitalícia, mas o seu mandato acabou por durar apenas oito anos.

[3] Quando Soderini morre, a 13 de Junho de 1522, Maquiavel dedica-lhe estes sintomáticos versos, em que a inocência pueril do gonfaloniere está à vista: «La notte che morì puer Soderini/l’alma n’andò dell’ Inferno a la bocca;/gridò Pluton: - ch’Inferno? anima sciocca,/va’ su nel Limbo fra gli altri bambini».

[4] Francesco Vettori nasceu em 1474 e faleceu em 1539, sendo mais novo do que Maquiavel. Conheceram-se no quadro da actividade diplomática de ambos e tornaram-se amigos. Trocaram uma longa séria de epístolas, sobretudo a partir do momento em que o Secretário caiu em desgraça. A leitura deste epistolário permite reconstituir o perfil psicológico e o ambiente histórico em que o nosso autor viveu. Cartas de aparência severa e grave, elas escondem, como diria Maquiavel numa delas, escrita a 31 de Janeiro de 1515, duas criaturas que, tal como a Natureza, são variadas na essência do seu ser «leggieri, inconstanti, lascivi, vòlti a cose vane».

[5] Carta encimada em latim ao «Magnifico viro Francisco Victorio oratori florentino digníssimo apud Summum Pontificem».

[6] A carta de Francesco é um exemplo acabado de refinada subtileza ante o infortúnio que não pode socorrer. Por um lado anima-o - «voi facciate buon cuore a questa persecutione, comme havete fatto all’altre che vi sono state fatte» - por outro distancia-se - «speriate che poichà le cose sono posate, e che la fortuna di costoro supera ogni fantasia e discorso, di non havere a stare sempre in terra». Maquiavel, inteligente e habituado ao género, deve ter compreendido a indisponibilidade do amigo e a hostilidade do meio em que este se movia, mas responde, considerando a carta «gratíssima» e «amorosa» e num assomo de dignidade, deixa claro que viverá como puder, com os poucos meios de que dispõe: «io mi viverò come io ci venni, che nacqui povero, et imparai prima a stentare che a godere».

[7] Que deixará em testamento a sua mulher Marietta Corsini.

[8] A frase ganhou foros de perdurabilidade. Cito-a no seu contexto: «Pure, per parere vivo e per ubbidirvi, dirò quello mi occorre(...)».