7.7.23

Da angústia à esperança redentora

 


Ler em 2023 um livro de ensaios de cariz filosófico, escrito em 1956, é, mau grado o hiato temporal, exercício interessante. Sobretudo pela actualidade do pensamento e por tanto que ele mobiliza para a reconsideração do humano e esperança redentora num mundo que não se condene ao caos. É o caso do livro de António Quadros A Angústia do Nosso Tempo e a Crise da Universidade, publicado pela Cidade Nova, revista e editora de cultura, dirigida por José Carlos Amado e publicada em Coimbra, e dedicado a Afonso Botelho e a Orlando Vitorino, dois expoentes do que veio a designar como filosofia portuguesa, no qual o seu autor compila escritos que havia divulgado na imprensa periódica desde 1954 e nomeadamente uma conferência proferida na Faculdade de Direito a 2 de Março de 1956, a convite da Associação Académica.

Se a capa menciona o tema da crise da Universidade como referência, isso resultará da circunstância de a formação intelectual de António Quadros, como de tantos outros dos seus companheiros de jornada, assentar numa formação autodidacta, refúgio possível ante o anquilosamento do sistema de ensino superior, nomeadamente no domínio da licenciatura que então se designava como de Ciências Históricas e Filosóficas, onde se graduou, dominada que estava ainda pelo redutor positivismo. 

A obra, de cento e sessenta páginas - que um lapso na numeração do índice, com um intervalo para menos de quatro páginas não perturba a orientação do leitor - é, porém, mais do que essa reflexão de crítica institucional, aliás construtiva, pois há nela todo um capítulo relativo a Subsídios para uma Reforma da Universidade Portuguesa [página 89] e é pela positiva que a análise carrila ao longo das suas páginas.

Estudo compósito, o livro torna-se interessante por compendiar o que é dito serem «quatro testemunhos da geração de 50 sobre a crise da Universidade e da Educação» [página 57], o que é feito pela menção a quatro livros, de natureza diferenciada, mas irmanados pelo mesmo pendor de originalidade: dois romances, Caranguejo, de Ruben A. e Eda de Eduardo de Azevedo, duas colectâneas de ensaios, uma intitulada Educação e Crítica, de Fausto Lopo de Carvalho e outra O Drama do Universitário, de Afonso Botelho. 

Não se trata, ao contrário do que a referência parece sugerir, de depoimentos dos autores, dos quais apenas o primeiro sobreviveu como nome mais generalizadamente conhecido, mas sim, de apontamentos diria de recensão, redigidos por António Quadros, sobre aqueles livros, nos quais encontra [página 59] «duas formas de repulsa perante uma sociedade em crise, respectivamente pela sátira e pela utopia, não deixando de conter sinais legíveis de possíveis caminhos educativos», mas que convergem no sentido de mostrarem «uma igual compreensão de que o problema fundamental do nosso país é o da educação» [ibidem].

O mote estava, aliás, já dado pelo texto introdutório, no qual se escreve: «Que a cultura portuguesa se coloca num grau muito mais alto, apesar do sistema deficiente de educação e dos meios de transmissão da cultura, é o drama que veladamente palpita nestas páginas» [página 10]. E isso é perceptível.

Se essa avaliação do regime de ensino universitário está hoje situada ao tempo, com difícil, mas não totalmente impossível, translação para os dias de hoje, já a reflexão que dá contexto à análise, essa fica como texto primordial. 

Trata-se de apresentar a «Necessidade, situação e Raiz Filosófica da Cultura Portuguesa» [páginas 15 a 53], onde, através de uma reflexão vestibular de cunho antropológico [sobre «o homem, esse desconhecido», título, aliás, de uma obra de Alexis Carrel], se progride para o tema da nossa «autonomia cultural [página 21], para, enfim, o estudo desembocar no tema da «filosofia nacional  - filosofia actual» [página 28], logo o da «filosofia portuguesa» [página 37] e, enfim [página 46] o da «arte de filosofar.

A perspectiva antropológica situa António Quadros nos quadros do existencialismo de matriz cristã, ancorado no pensamento de Karl Jaspers e Gabriel Marcel, miscigenado, porém, com famílias filosóficas convergentes, quer provindas do existencialismo, como Albert Camus, quer de matriz não inteiramente coincidente, como Unamuno, Ortega y Gasset, ou mais consentâneas, como a de Kirkegaard, não faltando a menção a Leonardo Coimbra, que falecera vinte anos antes, mas cuja obra, controversa foi, e é ainda inspiradora, perdurando como referência fundacional.

Trata-se, no que a essa perspectiva respeita, de apelo à consideração do homem concreto, o homem situado e, como tal, referenciado a um «circunscrito tempo, num circunscrito país, num circunscrito ambiente» e não aquele «homem abstracto: o homem sem pátria, o homem sem história, o homem sem família, sem crenças, sem paisagem» [páginas 17-18].

É este um dos momentos de plena actualidade do livro sobre o qual escrevo.

Reflectindo sobre a arte abstracta «que apenas desvela o mundo das sensações e dos tropismos» [página 18], a literatura, «em que as personagens se poderiam substituir por outras indiferentemente» [ibidem], António Quadros encontra aí o homem uniformizado, o «ser humano impessoal» [página 20], essa abstração desumanizada do que seja Homem, e conclui premonitório, numa pergunta angustiada: «Ora não será possível deter este maquinismo infernal que nos conduz para  uma próxima guerra atómica, porque dentro e pouco, deixando de se pensar nos homens, nos homens concretos, nada importará aniquilar alguns milhões de números, alguns milhões de abstrações, alguns milhões de abelhas?» [página 20].

Sendo esta a antecâmara da reflexão, o núcleo essencial do livro vai no sentido da proclamação da autonomia da filosofia dita «portuguesa», não porque seja uma filosofia em Portugal, sim para Portugal e que cumpra «a transcendentalidade específica do ser português» [página 31].

O caminho vem balizado por nomes que já são marcos miliários dessa forma de pensar e de que refere Amorim Viana, Cunha Seixas, Sampaio (Bruno) e Leonardo Coimbra. 

Trata-se, no seu dizer, de uma filosofia, essa a portuguesa, que «não é racionalista nem é metafísica» e que encontra subjacente às obras de Pascoaes, Régio e Fernando Pessoa, assente na valia epistemológica do símbolo e do mito, com desconsideração - ele diz «desprezo» - pela alegoria e pela metáfora [página 39], um modo de filosofar que «foge ao imanente e tende para o transcendente» [página 40], tenta «a síntese do natural e do sobrenatural» [ibidem], um pensamento, de qualquer modo, «purificado, ultrapassada a vivência emocional e intuitiva» [páginas 41-42], tudo com repúdio da «preponderância das formas menos altas da poesia e da arte, e subserviência perante as doutrinas estrangeiras e, entre estas, perante as mais fáceis e superficiais, como o positivismo» [página 43].

Enfim, até pelo título do capítulo se adivinharia, que «A Arte de Filosofar» tem como referencial Álvaro Ribeiro, cuja obra, segundo Quadros, procedendo embora, de um pensamento fundado em Aristóteles e Dante, por um lado, e Bergson, por outro, segue na linha da tradição portuguesa que havia sido delineada por Bruno, Guerra Junqueiro e Leonardo Coimbra, mas «afirma tal singularidade e tal originalidade, mesmo em relação à tradição que a precede, que não teme romper com os processos lógicos em que geralmente se move a reflexão filosófica europeia» [página 49].

Abre-se, pois, caminho para um «sentido de redenção e de optimismo, que é profundamente grato a um povo atlântico, como o português, cuja epopeia descobridora e navegadora é sinala e símbolo de uma navegação e de uma descoberta mais altas» [página 53]. É, por isso, o triunfo de uma aventura humana, «que não há-de findar no desespero e na angústia» [ibidem], afinal «uma arte de filosofar que precede a arte de viajar transcendentalmente» [ibidem].

Finda um livro, em generosa dádiva pedagógica, com uma interessante lista bibliográfica [página 145], surpreendente em muitas das suas menções, «subsídio» lhe chama o autor, que visa orientar leituras que iniciem para esta caminhada, que urge prosseguir e pode ter ali o seu começo, revisitando os próprios passos, reencontrando-se os vivos com os que ainda vivem, intemporal o espírito, eterna a alma.