Fica aqui o texto da minha intervenção ontem, dia 27 de Maio de 2023, no Colóquio de Homenagem a António Quadros, que teve lugar na Ericeira, sob o patrocínio do Instituto de Cultura Europeia e Atlântica e da Fundação António Quadros.
Falar sobre António Quadros quando se tem a meu lado António Braz
Teixeira, ronda o inútil e o atrevido.
Inútil, pois não posso acrescentar mais estando diante quem o conheceu
intimamente, estudou pormenorizadamente a sua obra e tem a sabedoria de a saber
enquadrar no âmago das várias vertentes em que se nos apresenta a denominada Filosofia
Portuguesa.
Atrevido, porque é contrapor a tudo isso a minha ignorância e ela tornar-se
ostensivamente visível.
Hesitei, pois, quanto ao que poderia dizer e resta-me, enfim, aquele
porto seguro de falar, também eu, do António Quadros que teve reflexo na minha
formação, como já me foi permitido que o fizesse quando do colóquio que teve
lugar na Universidade Católica, a propósito dos 90 anos do seu nascimento e 20
da sua morte .
Com esta ressalva, ficam estas palavras. Comecemos pela pessoa, e nela,
a sua face visível.
Não é irrelevante conhecer dos pensadores a pessoa que pensa, o facies,
o rosto e o olhar.
Por maioria de razão isso aplica-se a António Quadros, António Gabriel
de Castro e Quadros Ferro de seu nome.
João Bigotte Chorão surpreendeu-lhe a alma pelo
rosto, «um rosto de criança», um rosto «só no fim turbado pela doença e pela
melancolia de projectos truncados» e caracterizou, com mestria, o ser social,
«homem de paz em tempo de guerra, homem de convívio em tempo de solipsismo,
homem no diálogo no deserto do monólogo, homem de acção na apatia da inércia».
Gilberto de Mello Kujawski, que o conheceu num congresso, diria :
«Quando foi anunciada a sua presença, ele surgiu
a meus olhos como um homem vertical, de palavra viril e acento profético […] A
lealdade era o traço dominante no carácter de António Quadros. Lealdade aos
vivos e aos mortos, compromisso sacramental com o passado e com o futuro da
pátria lusitana»
E tantos outros testemunhos de conhecimento directo se poderiam
convocar.
Abel de Lacerda Botelho , por exemplo, focado numa das
vertentes do seu pensamento espiritualista disse:
«António Quadros, pela sua personalidade, pela
sua obra, pelo empenho na vida de cidadão comum, de escritor e de filósofo, que
foi, ele bem pode ser considerado o exemplo do missionário do Santo Espírito
Santo»
Para além disso, houve um António Quadros familiar e social, jogador
de ténis e de espaços de élite cosmopolita.
Num fascinante texto solto sobre seu pai, a escritora Rita Ferro
entrega-nos desse ser invulgar um retrato de que cito apenas um breve excerto :
«Era um homem bizarro: inquietava-o o enigma do
Ser, falava de Cristo com admiração, exaltava-se com a Poesia e levava a sério
as crianças […] vestia-se como os outros para não dar nas vistas, falava em voz
baixa numa língua estranha, contrariava os seus instintos até ao limite, e
aprendeu tudo o que havia a aprender na vida para experimentar sozinho a dor da
limitação humana. Ao mesmo tempo que se deixava arrebatar pelas pedras e pelas
árvores, teve amigos feios, com caspa nos ombros e gravatas amarrotadas. Era
tão crédulo e infantil que comovia: alugava a primeira casa que lhe impingiam,
subscrevia revistas para ganhar o relógio digital, e passava cheques aos amigos
sem qualquer apreensão; no fundo, no fundo, achava que o dinheiro era um
trambolho. Estava-se borrifando para que os livros se vendessem pois não tinha
pressa».
Ante a extensa obra publicada e o que, amorosamente, sua filha Mafalda
Ferro conserva, como espólio, nos arquivos da Fundação, com sede em Rio Maior,
imagina-se a vida de António Quadros resumida à sua escrita, esta a tradução do
seu pensamento.
Não é assim, porquanto estamos também ante um pragmático da acção.
António Quadros não se quedou pela especulação abstracta, antes verteu
o pensamento na obra escrita, a qual foi acumulando ao longo dos anos, a
essencial de cunho filosófico, mas também no domínio da ficção e da poesia,
para além do biográfico em que assume relevo maior o que escreveu sobre a vida
e obra de Fernando Pessoa.
É certo que, retomando as palavras de Jesué Pinharanda Gomes «a biografia pública de
António Quadros coincide com a sua biografia íntima: uma vida de reflexão, uma
vida a escrever, a comunicar».
Mas não só aí.
Foi uma constante do seu modo de ser, assumir iniciativas editoriais
pelas quais o pensamento do sector a que se ligava, e era, afinal, a sua
família espiritual, também pudesse encontrar modo de expressão, forma de dádiva
e entrega aos outros.
Assim entre 1951 e 1952 animou, com Orlando Vitorino, a revista Acto,
subtitulada como Fascículo de Cultura; entre 1957 e 1962, agora
reiterando a parceria com Vitorino, Afonso Botelho e Fernando Morgado, dirigiu o
jornal 57, Movimento de Cultura Portuguesa; entre 1964 e 1967 assumiu os
destinos da revista Espiral, de que foram editados 13 números. Entre
1988 e 1989 integrou o Conselho Patrocinador da revista Leonardo e,
enfim, entre tanto mais, foi responsável pela Biblioteca Básica do
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa nos dois últimos anos de vida, entre
1991 e 1993.
Homem de ideias, filósofo por intrínseca natureza, António Quadros foi
igualmente homem de acção e, ao contrário do que é paradigmático em relação a
uma certa noção do que seja o ensimesmamento do filósofo, teve relacionamento
público, vida social, e convivialidade.
E assim, foi fundador da Sociedade Portuguesa de Escritores,
tendo pertencido a uma das suas direcções.
Trabalhou nas Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste
Gulbenkian, ideia notável de Branquinho da Fonseca e Domingos Monteiro, lançada
em 1958, entidade de que foi inspector, e director de serviços até 1981.
Foi eleito como sócio correspondente da Academia da Ciências,
em 1985 e em 1990 da Academia Brasileira de Filosofia.
Fez parte da Direcção do Círculo Eça de Queiroz, de que seu
pai, António Ferro, foi fundador.
Foi vogal da direcção da Fundação Lusíada.
Criaria em 1969 o IADE, escola de formação do que mais contemporâneo
poderia haver no domínio da Arte, sim, mas também de áreas ao tempo inovadoras,
como o marketing e o design.
O resultado de todo este afã não ocorreu como mera sobreposição ao seu
pensamento, pois cada um dos segmentos dessa sua intranquilidade fazedora é
iluminada pela sua visão sobre a vida, simbiose entre a Natureza e o Humano.
Dir-se-ia ser António Quadros um caso de pensamento tornado acção, mas
é também, como com rasgo entendeu Afonso Botelho , um caso em que «a actividade
febril do seu quotidiano nem sempre nos permitia suspeitar quanto ele foi
progredindo na aceitação interior das obrigações de verdadeiro missionário do
espírito».
Procuremos, ante este ser excepcional, ainda que para um recorte
superficial, esse homem plural, retomando o tema do seu ser activamente pensante,
o pensamento em movimento.
Segue um breve apontamento sobre o que me foi dado entender sobre o
seu filosofar e sobre a lição de vida que nos trouxe.
Tem raízes claras assumidas o seu pensamento filosófico, mas, no
entanto, há que sublinhar não ser linear, menos ainda homogéneo, antes um
pensar em permanente evolução, filosofia do movimento e movimento, a fazer-se
até ao patamar da sua consolidação.
Nisso António Braz Teixeira teve a lucidez de lhe delinear os momentos
significativos, historiando-os e encontrando no seu percurso
«dois caminhos complementares e convergentes»:
«[…] o de uma Estética cujas categorias
partiam do concreto e da fenomenologia da Arte portuguesa, em especial da
arquitectura e da literatura, e de uma aprofundada reflexão sobre o seu radical
elemento simbólico, o de uma Filosofia da História de feição teleológica
e escatológica, em que desempenhava papel essencial uma Teoria ou Filosofia
do Mito, tendo, porém, aquela e esta sempre Portugal como referência
directa e permanente» .
António Quadros tornou-se «o rosto visível da filosofia portuguesa
desde 1957». Rosto visível, escreveu Pinharanda Gomes porque foi «o primeiro a dar
a cara, nessa longa e ainda persistente polémica nacional sobre a existência ou
inexistência de uma filosofia portuguesa».
Estudá-lo é ir, pois, ao encontro do que seja essa denominada filosofia
portuguesa, realidade diversa de uma filosofia em Portugal ao ser
território construído sobre especificidades temáticas portuguesas e não apenas
pensamento de portugueses sobre temas em que se não revê a identidade de
Portugal.
É de facto expressão que considero feliz dizer que António Quadros foi
o “rosto visível” da filosofia portuguesa. Não vai nisso demérito para a
originalidade do seu pensamento, nem para o do largo caudal de pensadores que
dessa corrente se reclamam ou nela devem ou podem ser inseridos, sim a
valoração da circunstância de a sua visibilidade social e a sua produção escrita
e oral ter dado expressão pública ao que de outro modo se ficaria por tertúlias
discretas ou obras valiosas, mas com circulação restrita.
Que tal corresponda a uma realidade perceptível evidencia-se no
momento em que a 29 de Junho de 1991 encerrou em Vale de Óbidos o livro Memórias
das Origens, Saudades do Futuro, que seria editado no ano seguinte, o
anterior ao seu falecimento, no qual sistematizou, mais do que escritos
esparsos, afinal, a expressão das grandes correntes que confluem para [palavras
suas] «criarmos um mundo outro, uma civilização do espírito pelo descobrimento
do ser pleno do homem» e foram estas as ideias marcantes do seu itinerário de
vida.
Mas há que perguntar: o que será, afinal, a dita filosofia
portuguesa?
Eis uma questão que se mantém actual, saber se existe uma filosofia
que se possa considerar, em espécie particular, uma filosofia nacional
portuguesa, ou se, pela sua própria natureza universal , o pensar filosófico se
caracteriza pela extraterritorialidade.
Algo tenho por certo. É que não pode prescindir-se, no pensamento como
na Arte, nesta como do mundo dos valores, éticos ou jurídicos sejam, do
carácter específico de cada entidade nacional. Indissociável, por exemplo, o
pensamento nietzschiano da zona territorial germanófona, assim como impossível
supor o pensamento socrático, na sua génese, para além da Grécia de onde surgiu
ou o pragmatismo de um Charles Pierce fora do contexto sociocultural
norte-americano.
Haverá, pois, «modos de filosofar» diferenciados consoante o espaço
geográfico-cultural, e não poderá desconsiderar-se «a raiz antropológica da
própria filosofia», porquanto «a filosofia é sempre dum homem ou de homem, duma
raça, duma nação e exprime-se numa determinada língua» , como o exprimiu João
Ferreira.
Para além disso, nem todos os temas de matriz filosófica são
intemporais, nem o é a própria ideia de filosofia como realidade intelectual
autónoma. Pense-se no acantonamento a que esteve confinada a noção de filosofia
durante o tempo do positivismo, claramente ao início do século vinte, como que
condenada como excrescência passada que o cientismo havia ultrapassado; e
contra isso se bateu António Quadros.
E, por ser assim, o tema de haver uma filosofia portuguesa é questão
com autonomia e significação.
Problema, é, porém, o que lhe ditará a especificidade e essa tem sido
encontrada nas características paradigmáticas dos portugueses, aquilo que
Teixeira de Pascoaes apelidava, e deu título a um seu pequeno livro, A Arte
de Ser Português.
E, a seguir uma tal via de análise, têm sido enunciados como
particularidades relevantes do português e assim pressupostos dessa filosofia
portuguesa, entre tantas outras as seguintes:
-» ligação à terra natal e às suas origens, mesmo
quando idealizadas por adopção
-» culto da ancestralidade e, assim, das
tradições
-» religiosidade mesclada de paganismo no culto
das efemérides
-» espírito saudosista, alma expectante e
fatalismo ante o devir
-» grandiloquência contraposta ao pessimismo auto
derrogatório
-» natureza aventureira e efabulatória
-» emotividade primária e lírica a descompensar a
racionalidade
-» pragmatismo na concepção, operosidade na
realização, relutância à abstração
Admitindo, para já, como hipótese de raciocínio, que esse seja o
método e que, assim, a filosofia portuguesa é a que se configura e, como tal,
se adapta, ao modo de ser português, abrem-se, desde logo, uma séria de
sub-questões, logo a mais evidente a de saber se isso não valeu apenas para
certos períodos históricos e logo perdeu validade com o devir da História, com
a circunstância de outros portugueses e outro estilo de portugalidade surgirem
com as suas idiossincrasias e outras particularidades.
É que, olhando para o que se recolheu como sendo essas características
individualizadoras dos portugueses, em muito comum aos galegos – a abrir,
aliás, a via para a bandeira Portugal/Galiza, uma só Nação – haverá quem,
na contemporaneidade se possa perguntar, e com legitimidade para o fazer, se
muitas dessas particularidades, corresponderão ao que se colhe no dia a dia,
pelas ruas e pelos meios de comunicação de massa como sendo a faceta
perceptível do português de hoje.
É esse um dos contextos problemáticos em que assenta a filosofia de
António Quadros. A não nos reconhecermos, enquanto povo e assim Nação, em algo
que nos individualize, a perenidade desse modo de ver e de ser estará em causa.
Sucede que nessa demanda da lusitanidade importa olhar mais longe do
que essa amostra limitada que a vida corrente oferece, sobretudo a urbana,
ademais a de certos extractos descaracterizados da sociedade portuguesa, produto
de uma adulteração cultural provinda de fenómenos de massa, instigados pelo
consumo, superficiais na sua essência, estrangeirados no pior sentido do termo,
aquele em que se soterra a nossa valia histórica, o valor da nossa cultura.
Haverá, sim, de procurar-se o máximo denominador comum que permita,
juntando o urbano ao rural, alargando a todas as classes sociais e recuando
algo no tempo, determinar uma mediana de características de personalidade e de
modos de ser do que será “temperamento português”, tal como o surpreenderam
etnólogos e caracteriologistas sociais, nestes incluindo os que o expuseram
através da ficção, da poética e da Arte. E que existe e subsiste.
É este o contexto em que se move a obra de António Quadros e levou a
título de um dos seus estudos, A Arte de Continuar Português
e onde orientou a sua vida intelectual.
António Quadros foi dos que cedo entendeu que os estudos jurídicos não
seriam o caminho a seguir, pelo que se licenciaria em 1948 no que então se
designava como as Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras em
Lisboa, mas também aí para se distanciar e de forma crítica do ensino que ali
era ministrado, excepcionando o magistério de Delfim Santos , este discípulo desse
gigante do pensamento que foi Leonardo Coimbra.
Miguel Real encontrou três momentos nos
cinquenta anos de labor filosófico de António Quadros, o primeiro de natureza
existencialista, o segundo de cunho nacionalista e o último de matriz
providencialista.
Existencialista é claramente a sua primeira fase, de um
existencialismo que, pela sua vertente religiosa se afasta daquele que se popularizara
com os escritos de Jean-Paul Sartre e de Albert Camus, mas que se entronca, no
que a António Quadros respeita, numa linha de pensar em que estão presentes os
elementos da sua religiosidade católica, fé que lhe ressurgiria em 1961.
São característicos deste período os livros Introdução a uma
Estética Existencial, Ensaio de Estética [Portugália, 1954], A Angústia
do Nosso Tempo e a Crise da Universidade [Cidade Nova, 1956] e A
Existência Literária, Ensaios Literários [Sociedade de Expansão Cultural, 1959].
Num texto de cunho autobiográfico que levou como prefácio ao
livro do sacerdote jesuíta Ismael Quiles , Sartre e o
Existencialismo vistos por um Filósofo Católico [Arcádia, 1959] a sua
sedução pelo existencialismo decorreu de, pela primeira vez ter encontrado:
«[…] o homem. O homem em sua majestade e seu
drama. O homem concreto, definido, situado; não um ser abstracto, não um ente
[…]».
E remata, em ruptura com o que era a visão filosófica de reputados
mestres:
«Diante da elaboração crítica de Kant, do
panteísmo sistemático de Espinoza, do espiritualismo absorvente de Hegel, eu –
com o meu nome, meu problema, minha língua, minha pátria, minha modalidade de
ver e pensar – não era ninguém. Agora era tudo. A partir do ser eu, com
todas as implicações fenomenológicas e existenciais da subjectividade, a
filosofia já não era algo de exterior, dogmático e intocável, a filosofia era
apenas o que eu dela quisesse fazer: a verdade era atingível, mas a partir da
minha experiência vital. Tudo o mais era história»
Como se verá, situado neste modo de pensar, António Quadros não se
quedará pelo individualismo que era imanente a esse modo de pensar, essa
egolatria, de exacerbação do eu, antes integra-a num contexto mais vasto,
onde se situa, como limite, a noção de pátria, «esse aqui-agora, um
espaço-tempo», a operar como «factor mediativo» e constituída «nos complexos
linguísticos, espácio-temporais, históricos, culturais».
Nasce aí o conceito de patriosofia, em cuja génese esteve a
interiorização de uma pulsão nacionalista, um espiritualismo histórico que
serve de fundamento à sua interpretação da História.
Surgem, com este pendor obras suas como O Movimento do Homem,
Ensaios de Filosofia da História [Sociedade de Expansão Cultural, 1963], O
Espírito da Cultura Portuguesa, Ensaios Literários Histórico-Filosóficos
[Sociedade de Expansão Cultural, 1967], Teoria da História em Portugal,
Ensaio de Filosofia da História e Antologia [dois volumes, Espiral, 1967 e
1968].
Enfim, o providencialismo, visão messiânica e projecto áureo,
assim esperançosa de um futuro para Portugal, ideário que se lhe impõe como
necessidade salvífica face aos tempos conturbados que então se vivem ante o
desordenado período revolucionário de 1975, perdido o Imprério, e que viria a
verter, em verso, no poema Ser Profundo, Ode [Espiral, 1980] e
consolida, no estudo Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, Ensaio de
Filosofia e de Mito [dois volumes, Guimarães, 1982 e 1983] e, enfim, na
obra que deixou incompleta em vida, ao faltar-lhe o terceiro volume, publicado
postumamente, Portugal, Razão e Mistério, Ensaio de Filosofia do Mito e
Símbolo [dois volumes, Guimarães, 1986 e 1987]
Só um Homem da Literatura, como João Bigotte Chorão , poderia caracterizar, em
síntese feliz, este encontro de António Quadros com um pensamento de matriz
patriótica:
«Grande mérito de António Quadros foi o de
reconciliar-nos com a ideia de Portugal, sem chauvinismo nem nacionalismo
estreito, e o de propor, direi mesmo de impor, contra a ditadura positivista,
racionalista e materialista, mestres que encontrou fora da Universidade e dos
quais se fez discípulo e exegeta».
De fervor patriótico se tratava nessa busca sobre os fundamentos de
Portugal.
Já António Braz Teixeira, escreveu :
«Deste modo, a demanda filosófica e existencial
de António Quadros conclui-se numa Patriosofia, numa tentativa,
infelizmente inacabada, de hermenêutica da razão de ser de Portugal, que
concebia como razão criacionista e teleológica que contém em si um projecto
áureo de realização da humanidade»
Entendem-se agora as palavras de Dalila Lello Pereira da Costa :
«Pelo seu amor a Portugal, a António Quadros foi
concedido tocar o Mistério intocável desta nossa pátria e traduzi-lo no seu
conhecimento, em palavras humanas, transmitidas a todos nós, portugueses»
Na última entrevista que concedeu a Antónia de Sousa, e que foi
publicada no dia 11 de Março de 1993, poucos dias antes de morrer, a 21 desse
mês, António Quadros lamentava-se que os portugueses «não dão uma chance
a Portugal. Põem Portugal no banco dos réus e condenam-no». E rematava,
perguntado sobre «que mensagem gostaria de dirigir aos Portugueses»: «Acreditem
em Portugal, porque Portugal está no mais fundo de cada um de vós e sem
Portugal sereis menos do que sois».
Mas é uma busca sobre o travejamento simbólico da Nação dos
portugueses, aquilo de que trata esta parte da sua obra, cuja desocultação não
é fácil por não ser directamente apreensível, antes a exigir iniciação e por
isso o seu fascínio e sua devoção pela obra poética de Fernando Pessoa «seu
aliado», e pela Mensagem, que é a expressão de um «conceito
transcendental da Pátria portuguesa» .
E por falar em Homem de Letras, vamos ao encontro dessa natureza literária
de António Quadros, que não é uma outra natureza, sim forma de expressão das
suas ideias.
Se António Quadros não se esgotou na escrita ensaística, não lhe sendo
estranha a poesia, também a ficção literária foi forma de expressão do seu
pensamento.
É impossível deixar aqui mais do que uma breve nótula sobre esses seus
livros.
No domínio da ficção, o género que parecia ser preponderante na obra
de António Quadros era o que se traduzia em contos, logo o Anjo
Branco, Anjo Negro, publicado em 1960, com uma segunda edição em 1973, as Histórias
do Tempo de Deus, saídas em 1990, não podendo desconsiderar-se, porém, a
história para crianças Pedro e o Mágico, publicada, em primeira edição
em 1973 e reeditada posteriormente.
Anjo Branco, Anjo Negro, editado
pela prestigiada Portugália, dedicou-o ele ao pensador romeno Mircea
Eliade, ao contista Somerseth Maugham, ao filósofo, seu inspirador, Álvaro
Ribeiro ao pintor Salvador Dali e, enfim, à Mulher Eterna, «fonte de vida, que
no desenho do espaço e no ritmo do tempo, inlassàvelmente e com beleza de no
momento excepcional, ensaia uma transcendência e invoca uma reintegração que do
Homem esperam a palavra retardada e conclusiva».
São oito contos, «breves histórias lhes chama o autor», desiguais no
estilo, mas em que me interessei menos pela narrativa, mas mais pelo que subjaz
à mesma, uma ida ao interior da alma humana, em maior profundidade que o mundo
das ideias e o universo dos sentimentos.
Assim em O Vestido Cor de Terra, porventura o menos conseguido,
logo a terminologia esotérica a surgir como realidade mais evidente, a oferta
de Ricardo a Marta é «solene e iniciática», tudo se move em torno da valia do
«mistério» a tal ponto que, ido este, «tudo acabara», numa história em que ele
só a possuirá quando já não recear os outros, apenas quando estiverem «sós no
mundo», sendo impossível «viver-se sem o conhecimento mútuo dos mínimos
recantos da alma, cada um com o seu enigma indizível e intocável».
Num outro registo, ocorre a quase doença mental de Margarida, em A
Alma da Casa, e a busca incessante de um lar, de casa em casa, porque todas
as casas «são casas sem alma», conto em que irrompem os elementos primordiais
«o fogo, o fogo que purifica todas as coisas», pois, casal condenado ao
inviável, já têm «a árvore que é a natureza erguendo-se para o céu, que é a
escada por onde a nossa alma poderá subir para contemplar tudo quanto é eterno
e é divino».
Estranho na sua complexidade, o que se escreve em A Rosa Mística,
«história para homens», escrita na expectativa de serem lidas «por mãos
masculinas», relato de dúvida e angustiosa incerteza, o encontro, ela debruçada
sobre flores, «o corpo imaterial de uma ideia» e o amor, um amor transumano,
«devíamos amar-nos todos uns aos outros, amar-nos tanto e com tanta beleza que
viéssemos pouco a pouco a formar um único ser, um só ser, e esse ser seria
Deus», amor universal «pense que uma árvore também brota de um encontro, de
infindáveis encontros, do amor entre a semente e a terra, do amor entre a raiz
e as mil fontes de vida que se agitam aqui, invisivelmente».
A Virgem da Montanha é, na sua
brevidade, um momento de sensibilidade criadora, a gravidez da meretriz, que
«todos os homens a tinham fugazmente possuído – e nenhum a possuíra
verdadeiramente», a virginizá-la novamente, como se, porque agora Mãe,
retornasse à a um «universo fresco, intacto e maravilhoso da luz, do bem e da
verdade», purificada e Mãe simbolicamente bíblica, mas morta agora a sua cria, o
seu Jesus, às mãos da cólera da populaça. Está aqui plasmado o maravilhoso da
criação, «o movimento que nas entranhas lhe vinham sendo há dias um mistério
insólito», o movimento que «fazia do seu corpo o ser que antes não fora, o ser
criador, o ser abençoado, o ser propagador, a mãe, esse enigma promissor de
Deus».
Vivendo em mundo onírico, trazida pelo enigmático conto O Pesadelo,
Onix, nome de pedra mágica que capta as energias maléficas, ali figurada, perseguida
por árvores cuja transparência era a maior arma deste novo inimigo, caminhando
e caminhando até «à ultima fronteira do cansaço», para o lugar onde um divino
Ele, algures, a aguardava e Beatriz, quotidiana e real, quase vulgar, morta em
acidente, e Manuel, brevíssima aparição, qual príncipe encantado que a despertará
do sono eterno, Onix, enfim, «o sorriso da terra e o seu cântico de alegria» a
fazer «florescer as planícies, as montanhas, as próprias rochas dos mais altos
picos».
Há em O Segredo uma profusão de referências que torna o conto
um dos mais profundos em significação e por isso inviável trazê-lo aqui em
detalhe.
Em O Labirinto ou o Fim da Saudade está «a saudade, a saudade
do mundo, a saudade do que não fizera, a saudade do que poderia ter feito, a
saudade de todos os seres que sucessivamente fora, a saudade do que poderia ter
sido, a saudade do amor», o «amor como predestinação», «saudade de um amor que
não havia, saudade de um amor desumano, saudade de um amor transcendido».
Enfim, as Metamorfoses, o anseio por mais, o anseio pela
totalidade, pelo triunfo do espiritual sobre o material, «não podemos querer
menos do que a pátria, não podemos desejar mais do que o império do espírito
sobre a humanidade inteira», testemunho de ganas de viver, sobrevivendo,
Vergílio «libertava pouco a pouco em si a ideia de que estava morrendo, podia
renascer novamente para começar outra vez», começar em «metamorfose total»,
tudo sentido e assim apreendido, pois «não se pensa só com a razão».
+
Assumido ainda na forma de contos, já o livro as Histórias do Tempo
de Deus, obra galardoada com o prémio de Novelística da Casa da Imprensa e
com o prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências, é tido como uma obra
significativa do ressurgimento da fé religiosa na alma do seu autor, sendo,
porém, muito mais do que isso. Dedicado a seu irmão «o Fernando, meu irmão,
longe mas sempre perto», e cada um dos seus contos dedicado a um dos filósofos
seus fraternos companheiros, o livro é enriquecido com uma análise minuciosa e
profunda de José Antunes Ferreira.
São deste as seguintes palavras:
«É que, se a arte poética de A.Q. [António
Quadros] pretender, como pretende, o desocultamento das potências anímicas do
homem e de suas ramificações cósmicas, ela há-de pertencer sempre ao âmbito
duma arte elevada e, se conseguir libertar a alma dos Portugueses do que nela
há de tosco, de intolerante, de servidão, visará sempre salvaguardar a nossa
liberdade e a liberdade, independência e segurança da nossa Pátria».
São sete narrativas, diversas, mas em todas elas, para além da
história, momentos reflexivos filosóficos.
Logo o primeiro, intitulado A Palavra, dedicado a António
Telmo, o médico e o doente mental com o qual se identifica, o saber-se «o que é
um homem», onde estará no seu corpo «o órgão da liberdade», onde encontraremos
nele «a matéria do sonho» ou «de que glândula extrai ele o poder de escolher».
Em O Mar, dedicado a Agostinho da Silva, surge, ainda que em
aparente prosa, a declamação lírica, navegante: «O ouvido, em tensão, abre-se
como um grande búzio de carne, ao inefável da noite, da distância, do
pressentimento, da silenciosa voz nocturna, e eis que a natureza, surpreendida
em seu recolhimento original, se interioriza e se vem cifrar na mais subtil
percepção».
Diverso o registo, em O Pai, com dedicatória a Luís do Espírito
Santo, camarada no grupo 57, está uma história de errância, a esgotar-se
no reencontro com a Mãe, tornada de corpo em aluguer em alma de todas as mães e
«repentinamente a pureza», a «uma
explosão de alegria, irreprimível e imensa», a transformar «a dor desta noite
interminável na graça de uma dádiva infinita, que lhe abria diante dos passos
um mar de luz e de amor», «através da formulação de uma palavra secreta e
reconfortante, capaz de reconstituir e regenerar a queda no desgarramento da
individualidade abandonada», como se «para lá da alegria e da dor de viver,
enigmaticamente o atravessasse, o possuísse, o transcendesse a graça universal
do movimento, que une todos os seres na mesma demanda».
Dedicado a Francisco da Cunha Leão, A Aventura, história de
ensimesmamento, isolamento, uma vida vivida «num mundo contingente [em que] só
a morte continuava a não o ser», em que «viajar surgia-lhe de súbito, não tanto
como um prazer, mas como a esperança de uma mocidade perpetuamente renovável»,
o «despertar cada minuto para a curiosidade do minuto seguinte. Posse do
espaço, anulação do tempo», a busca do sentido da vida, enfim «a alegria de
estar vivo, e de poder viajar, e de poder também regressar. Mas não seria
propriamente um regresso, porque nunca se regressa».
Império, dedicado a
Avelino Abrantes, outro companheiro da jornada editorial dos 57, é, na
singeleza da sua narrativa, a parábola bíblica do regresso do filho pródigo, o
contexto empresarial, o contraste entre dois irmãos e assim de dois mundos e a
amarga lição de que «a maior ambição dos homens é reencontrar a sua alma, e
isso só o poderão fazer a partir da liberdade pela qual são eles próprios,
indivíduos patéticos em busca de uma personalidade que julgam encontrar na
ficção social, e por isso são destruídos. Aqueles que tudo querem reduzir aos
factores económicos, muito longe estão de conhecer a natureza humana…»
Penúltimo conto, tremendo de angústia existencial, No Tempo,
Revelando o Tempo irrompe em torno da música de Bach e em torno dela a
filosofia do movimento, pois «Bach não é só queda e fuga, e logo acção e
movimento, contraste de aporias que se reúnem, que resolvem a contradição, que
mutuamente se sondam», e a partir daí,
em torrente «as fontes irradiantes do movimento, o ímpeto mental que se revela
neste tempo múltiplo, heterogéneo, rico de significação»; e o desejo, «o alívio
e uma vaga saudade do corpo que não chegara a possuir, mas em parte conhecera,
da alma que julgara compreender mas que lhe insinuara no espírito a mais
desconfortável dúvida, não sobre ela, objecto, mas sobre ele sujeito», a dúvida
sobre «se o amor vem antes ou vem depois, se o amor cria a solidariedade ou
apenas a exprime». E tanto mais!
Enfim, «ao José Santiago Naud», poeta e professor, fundador da
Federação Espírita brasileira, Ao Longo da Nave, é a tragédia da agonia,
lembrança da viagem que foi viver, a voz da memória, a lembrança de todas as
camas dos seus sonhos, a cama de infância «nau de corsários» inventados, depois
o «lastro inútil do meu dia de advogado», «o homem tem uma besta a devorar-lhe
os flancos, que se chama privação», «com o meu pequeno saber de homem de leis,
julguei em tempos que uma nova lei, um novo código, uma reversão de homens e
valores … Mas a privação vai até ao âmago do mais fundo e essencial do ser
humano».
E Deus, a angústia sobre Deus, a nave em viagem, «envolta em negrume,
como este quarto, como esta cama», «uma igreja é uma nau que vai pelo mar
universal à procura de Deus, que leva já Deus consigo nos mastros, no porão, no
leme, no coração dos marinheiros, na face enigmática do capitão, nau que domina
a natureza, quilha a escorrer água que se eleva e inverte à luz de virais,
entrando num outro espaço e num outro tempo […]».
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Mas não foi apenas na novelística em forma de contos que António
Quadros nos trouxe a evidência do seu ser, também no romance e por uma
forma muito particular.
Não há nesta vertente da sua escrita a por vezes clássica soma extensa
e intrincada de personagens, nem o registo temporal diferenciado ou a
acumulação de pormenores descritivos que são característicos frequentes de
obras com esta natureza. Com ele tudo é simples e, no entanto, complexo.
Nesse domínio romanesco tínhamos apenas Uma Frescura de Asas, obra
vinda a lume em 1973, até ter sido achado no seu espólio um inédito, que
intitulou A Paixão de Fernando P., a que aludirei em breve. Há também a
ideia de O Segredo Perdido, romance que anuncia como «obra a publicar»
na folha de guarda do seu livro de poemas, que adiante se referirá, intitulado Viagem
Desconhecida, publicado em 1952, onde igualmente dá conta da intenção de
editar um livro que se chamaria Teatro Trágico, em um volume, no que se
incluiria a peça Asa Negra, em três actos. e A Barca do Silêncio,
com igual número de actos.
Uma Frescura de Asas é, sob o
aparente registo ficcional, um relato dos últimos dias de vida do filósofo José
Pereira de Sampaio, conhecido pelo pseudónimo “Bruno” , retido num leito de
hospital, a rememorar as limitações que a doença lhe trouxe, o pudor e a
vergonha ante a uma situação amorosa que se sentiu incapaz de consumar, e
angústia final de uma fé religiosa que repudiara, mas que se lhe apresenta,
sedutora, junto ao leito que é já o da sua morte física.
Há neste registo diarístico, situado entre 6 de Novembro de 1915 e
«pelas seis e meia da tarde» e 11 de Novembro desse mesmo ano, «pelas sete da
tarde», o que João Bigotte Chorão denominou uma «identificação
do criador com a criatura», a exigir que o autor se explique, demarcando-se do
escrito, com a nota preliminar: «este livro não é uma biografia histórica. É
uma obra de imaginação. É uma ficção. Um romance».
Clara Rocha, na recensão crítica que fez da obra para a revista Colóquio
notaria que nesta narrativa
biográfica «o biógrafo também se retrata neste retrato de outrem» e há, de
facto, algo de premonitório neste escrito relativamente à sorte de António
Quadros.
Na entrevista a Antónia de Sousa, António Quadros diria: «Eu
identifico-me muito com a personagem do Sampaio Bruno, sobretudo no campo do
pensamento, mas há ali um drama humano que a mim me tocou profundamente».
História dolorosa, história de conversão religiosa para uma religião
feita de inteligência a pôr na boca de Bruno estas palavras:
«Deus não tem poder para intervir directamente no
tecido da vida, do cosmos e da humanidade que Ele criou, mas d’ele emanaram.
Nós, todo o meio heterogéneo, humanos, animais, vegetais, minerais, somos
irmãos e, procedermos por igual da degenerescência de Deus, e o que Ele deseja
é de facto, sem violar a nossa liberdade, que, todos nós juntos, trabalhemos
para regressar ao Uno que ele era ao princípio, ao Homogéneo que Ele era e será
no fim dos tempos».
Enfim, a paixão por Fernando Pessoa, lançada no livro cujo manuscrito
estou a transcrever para que seja editado em Julho, no Congresso comemorativo
dos cem anos do seu nascimento.
As palavras são de Raquel Nobre Guerra : António Quadros é um leitor
integral de Fernando Pessoa. Neste contexto surgiria o romance que não chegou a
editar A Paixão de Fernando P.
Trata-se, aliás, no que a este livro respeita, da passagem ao acto de
uma presença obsessiva a do poeta da Mensagem que António Quadros
estudou com intensa proximidade. Como revelaria, uma vez mais na entrevista
final:
«às vezes chego a pensar que o Fernando Pessoa é
uma presença de que não me posso livrar».
Presença permanente, a de Fenando Pessoa, nos seus estudos literários,
António Quadros escreveria, a convite de Fernando Namora, uma biografia de
Pessoa para a Editorial Arcádia, vinda a público em 1960 a que se seguiria, já
em 1984, para as Publicações Dom Quixote o livro Fernando Pessoa,
vida, personalidade e génio.
Editaria para as Publicações Europa-América, prefaciando-a, uma
parte substancial da obra pessoana, a que se somariam os três volumes de
compilação que prepararia em 1986 para a Lello, em parceria com Dalila Pereira
da Costa.
A Paixão de Fernando P. é um
romance espelho, construído sobre a complexa relação amorosa de Fernando Pessoa
com Ofélia Queiroz, tia do poeta Carlos Queiroz, cuja conversação epistolar nos
foi legada como um documento extraordinário, desnudando a faceta mais íntima do
poeta e, afinal, a mais expressivamente inconsequente.
De uma relação complexa se tratou que tem suportado distintas e, por
vezes, boçais interpretações, mas que propiciou estudos de profundidade sob
ângulos diversos.
António Quadros, projecta-se sobre essa outra sua figura, avulta ali a
tensão entre o desejo de vida e o dever de uma obra, entre a volúpia erótica da
carne, o carinho meigo do amor e «os deuses que não perdoam», juízes de uma Lei
que, é afinal, a sua missão como enviado angélico a esta Terra. E por ora mais
não direi.
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Enfim, o poeta. Foi aí que tudo começou, foi aí que tudo
terminou.
Foi com Além da Noite, editado em 1949 e Viagem Desconhecida,
publicado três anos depois, que António Quadros nos ofereceu a sua poesia. Em
1966 publicaria as odes Imitação do Homem. Em 1980 daria à estampa Ó Portugal
Profundo e, enfim, em circulação restrita em 1991 as Trovas para o
Menino Imperador no Dia de Pentecostes, com segunda edição em 1998.
Na entrevista derradeira a Antónia de Sousa, a que já nos referimos,
confidenciava, optimista com a morte ali tão próxima: «também estou a pensar
editar um livro de poesia que, de certo modo, é um repositório do meu
pensamento e dos meus valores e que está esgotado há muitos anos».
Além da Noite, são trinta e três
poemas, com ritmo, estilo, extensão e natureza entre si diferenciados.
Alguns pungentes, como Vem Noite, dedicado a sua mulher:
«Vem noite,/Vem docemente afagar a minha
alma…/Que todo este horror desapareça!/Lágrimas, soluços, tristes e longos
beijos,/A tua máscara filha, os teus olhos fixos/De quem viu a morte. Vem
noite/A minha filha morreu e eu quero dormir, Quero sonhar com esses dias em
que ignorava a morte. Não chores, meu amor! Espera/Pela noite! Iremos os dois
de mão dada/Pela estrada fora. Lá no fim, a nosso filha/Aguarda-nos. Lá no fim,
a nossa filha sorri…/Vem noite,/Vem docemente afagar a nossa alma…»
Outros, breves e tristes como a Poesia Triste:
«Uma sensação de lua nos meus membros
estendidos/Uma aragem cinzenta/Uma aragem fria/Uma aragem morta/Na minha
cabeça/Nos meus ouvidos, nos meus olhos embaciados»
Ou este de lírica contida, intitulado Ser, de que cito a
primeira estrofe:
«Começo para além do meu sorriso,/Onde morrem as
dores e as alegrias./Começo para além do meu sonhar,/Onde findam os ódios e os
afectos […]
Ou esta quase ode, denominada Não Quero, em registo
proclamatório:
«Vem até mim um cheiro avassalador/Um
irresistível vento brutal que me quer arrastar aos/Tombos./Sinto nele águas
estagnadas e pântanos sem fundo/Ao lado dos mais belos poemas do mundo./Sinto nele
todas as ideias pensadas/E todos os sentimentos experimentados./Sinto nele toda
a diversidade da vida/E todo o mistério da morte./Ah! Finco desesperadamente os
pés à terra/A tudo o que é material e sólido/Agarrro-me, agarro-me/Porém o
gigantesco cheiro das mil tonalidades/Tem uma potência cujo mistério não
alcanço./Sinto-me sugado pelo vento da vida e pela morte […]»
Uma Viagem Desconhecida, colectânea
em cinco partes, ilustrada por Martins Correia, é melancolia tornada poética, que
não é possível sintetizar neste breve tempo que é o razoável concedido para uma
conferência, mas de que deixo dois breves excertos entre tantos possíveis.
Assim de Os Sinais:
«Canto o silêncio, no silêncio infinitamente profundo
e assustador da minha alma/ignorada saudade de um paraíso perdido, onde tudo
foi tão simples e puro, que nada gemeu ou chorou, tropismo surdo e cego de uma
vida para lá desta vida e desta morte – ambas tão próximas e conhecidas – os
cânticos dos anjos apenas se ouvem nos corações aflitos […]
Ou este, paradoxalmente intitulado O Sexo, inserido numa
trilogia a que chamou O Amor:
«O mar e a terra, a montanha e a planície/As
árvores e os frutos, os animais e os homens/E ainda todas as forças esparsas no
universo/Que sopram tempestades e despertam cataclismos/E ainda os ecos dos
problemas insuperados/E dos mistérios indizíveis e individizíveis/E ainda as
aparências transcendidas/E as raízes percorridas até ao fim,/E as almas
ausentes/E a matéria presente/Tudo quanto existe e se separa/Tudo quanto é
agitado pelo sopro divino/Se põe a cantar num coral maravilhoso e breve»
Em A Imitação do Homem, oferece-se uma lírica esperançosa, como
na Ode à Alegria: «Na hora matinal do ser,/a face diurna/no tempo da
infância/eu canto a alegria, eu canto a alegria./Alegria de estar vivo/e ser a
seiva a brotar/e ser a vida a brotar/e ser o impulso viril/que abre os
caminhos, que sobe as montanhas,/que descobre outra vez o que já fora esquecido/que
refresca, que renova, que retoma/e dá o passo que ainda não fora dado».
Mas também a realidade imanente do movimento e de sonho,
característica essencial do seu modo de conceber, a quem dedicou uma das odes,
intitulada precisamente Ode ao Movimento, dedicada a Álvaro Ribeiro: «Sonhei
que do sonho de um sonho despertava. que subitamente todas as coisas se moviam,
que lá dentro os meus filhos corriam/e que a minha alma do corpo enfim se
libertava. Ó movimento,/ó subtil energia,/oculta alegria/de não ser objecto ou
coisa,/de ser perene viagem,/jamais fixada imagem,/euforia de ser para
caminhar,/de ser para atingir/o porto que ninguém sabe».
Ó Portugal Profundo, brevíssima obra
de doze poemas, é claramente uma obra sentida em nostalgia por sobre o fim do
Império português o «meu Portugal que foste, que foste grande no mundo», um
Portugal «adormecido», mas construído com desejo de que o seu amado ente pátrio
abra as asas, abra as velas, revele o seu «ser profundo», porque «pr’a morreres
ainda é cedo, ainda não o quer a sorte».
Estão aí, irrompendo em tanta estrofe, as ideias-mestras do pensamento
de António Quadros, a sua patriosofia, ao rememorar o país que «na proa
das tuas barcas/Levaste uma pomba branca/O divino Espírito Santo/Tiveste como
alavanca», ao esperar que «Portugal, somos ainda,/Porque a semente que
outrora/Germinou em terra ingrata/Há-de reviver agora».
Convocando uma ideia de Portugal ser profundo, ente outro, primordial,
subsistente para daquele em que este Portugal se tornou, Quadros proclama: «Ao
perder-nos de nós próprios,/É a matéria triturada/De que por razão e
graça/Nascerá uma nova alvorada//Ó Portugal ser profundo,/Parte à conquista
daqui;/Há um outro que esqueceste,/Um outro dentro de ti».
E eis 1991. Como o salientou António Cândido Franco na sua nótula
final às Trovas para o Menino Imperador no Dia de Pentecostes:
«[…] o Deus de que se fala nas quadras – esse que
não distingue entre materialistas e espiritualistas, entre ateus e crentes –
não é o Deus dos exércitos, dos ministérios, das empresas, das escolas, das
igrejas e de todos aqueles lugares que fazem da vida uma prisão estreitas de
conveniências, preconceitos, agressões, títulos e interesses pessoais […] o
Império de que aqui se fala nas quadras não é o Império dos militares, dos
políticos, dos economistas ou dos padres, o Império dos vários imperialismos
mundiais que ao mundo só tem dado, desde Roma, armas, torturas e escravidão […]
o Portugal de que aqui se fala não é o Portugal da Reconquista, que só existiu
nos maus livros que nos deram a ler na infância, nem o da expulsão dos judeus e
mouros, que existiu mesmo para tristeza nossa, nem ainda o da ganância e das
almas cativas, que ai está não sei se para vergonha ou lição nossa».
Está ali, dito em forma poética, todo o António Quadros. Se da sua
obra houvesse apenas um livroa ser lido, atrevo-me a dizer, seria esse.