21.3.18

Viva, sempre viva!

Fui juntando quantos livros seus conseguia e faltam tantos. Soube agora, casualmente, pela Capela Arraina, que lhe foi conferido o título académico de doutor honoris causa. Para mim Jesué Pinharanda Gomes, homem de Quadrazais, já o era.
Com pudor confesso que o seu magistério moral, feito de sabedoria discreta, me marcou profundamente. E os seus livros que não tenho e as dezenas entre centenas que, alinhados numa estante, me acompanharam, de uma cidade a outra e de regresso à primeira, mesmo os não lidos ou nem folheados são, na minha sofrida consciência, uma dor íntima, prova da minha ausência ao horto do seu convívio.
No plano das ideias, esse território da razão aparente, tanto nos separa, ele ungido pela graça da Fé; na comunhão das almas, porém, o encontro fugaz com a sua pessoa mas perene com o seu ser, une e regenera a minha imperfeita existência.
Foi através de si que me aproximei da filosofia portuguesa. Numa entrevista que lhe fiz [e que lembrei aqui neste meu blog] perguntei-lhe porque tinha escrito sobre a Teologia de Leonardo Coimbra, uma das suas obras impressas pela Guimarães. Cândida ignorância me levou à pergunta; teve a gentileza de mansamente responder sem repreender.
Quantas pompas académicas me deixam indiferente, não esta. Por baixo dos trajes talares,  miúdo de corpo, imenso de espírito há uma criatura que eu conheço. E fico com isso feliz. Viva, pois, sempre viva!

20.3.16

Epistolário António Quadros/António Telmo:apresentação em Sesimbra


Apresentado em Sesimbra por Abel de Lacerda Botelho na Biblioteca Municipal do Epistolário trocado entre António Quadros e António Ferro.

Epistolário António Quadros/António Telmo: apresentação no Porto


Apresentado no Porto por Paulo Samuel nas instalações que a editora Labirinto de Letras assim inaugurou naquela cidade, na Rua de Cedofeita.

9.1.16

Epistolário António Quadros/António Telmo: apresentação em Lisboa



Apresentado em Lisboa por Miguel Real no Centro Nacional de Cultura, sob a presidente de Guilherme d' Oliveira Martins. Na mesa, o editor José António Barreiros, Mafalda Ferro, da Fundação António Quadros, Guilherme d'Oliveira Martins, João Ferreira, eminente vulto da filosofia portuguesa, Miguel Real e Pedro Martins, do Projecto António Telmo.Vida e Obra.


O livro, editado em parceria pela Labirinto de Letras, Editores e pela Fundação António Quadros, pode ser adquirido em breve no mercado livreiro ou através destas duas entidades.

2.12.15

António Quadros/António Telmo: missão cumprida!


Tinhamo-lo anunciado em Maio [ver aqui] como sendo uma publicação para ser honrada no segundo semestre de 2015, pela Labirinto de Letras, Editores, a que dei vida. Cumprimo-lo. A obra está nos prelos. Será apresentada no Centro Nacional de Cultura ainda este mês de Dezembro.

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Do prefácio de António Carlos Carvalho, respigo este excerto: 

«A Amizade é a primeira das virtudes, segundo Aristóteles. Eis um princípio difícil de entender num tempo como o nosso, em que as amizades se conquistam nas redes sociais e em que os supostos amigos se quantificam como quais outras coisas adquiridas. 
Na verdade, a Amizade, quando é verdadeira e não um mero jogo de faz-de-conta, é tão incompreensível e difícil de definir como o Amor – ou não fosse ela própria uma forma de Amor e, por vezes, mais duradoura do que a relação amorosa. Aparentemente, a Amizade tem a ver com a eleição – escolhemos alguém como nosso amigo. Mas será realmente assim? Ou estaremos perante mais um dos muitos mistérios da existência? A Amizade pura e simplesmente surge, acontece, cresce e amadurece enquanto fruto de estranhas afinidades que sentimos mas não compreendemos. Como se algures, num qualquer livro da vida, estivesse já escrito que duas almas se iriam aproximar um dia e criar laços ocultos mas bem reais que resistem ao tempo, à distância e às adversidades. Tal como, biblicamente, nos é contado no caso de David e Jónatas.
O livro que temos nas mãos é um magnífico testemunho dessa tal amizade virtuosa, das profundas afinidades existentes entre dois seres – António Quadros e António Telmo. Um livro curiosamente semelhante ao volume da correspondência trocada por Gershom Scholem e Walter Benjamin entre 1933 e 1940 e que Scholem comentou de modo admirável em Walter Benjamin – história de uma amizade.»


Fruto de uma parceria com a Fundação António Quadros, Edições, com a cooperação do Projecto António Telmo.Vida e Obra, o livro, que extensamente anota a correspondência que compila, regista estudos de Pedro Martins, Rui Lopo, um posfácio de João Ferreira, bem como biografias dos correspondentes.

30.5.15

Viajando não tanto mas quanto


É bom viajar com quem vê com a totalidade do Ser, e, mesmo que em breve excursão, se não vai muito longe vai sempre muito fundo na alma da paisagem que vê.
Publicado em 1969, reunindo crónicas que editara no Diário Popular, após uma viagem feita à Rússia e à Polónia em Julho de 1968, o livro, que me trouxe a memória o de Leonardo Coimbra, lembra e situa o interesse português pela cultura russa e por isso escreve: «este interesse não é ocasional e não é filho de mero literatismo culturalista. Quem tenha meditado nas conotações entre a misticidade russa e a espiritualidade portuguesa, entre o messianismo eslavo e o sebstianismo português, compreenderá o interesse necessário daqueles filósofos».
E, mau grado ter visitado um país de Igreja sufocada, constata: «Na Europa, só há dois casos idênticos, de preponderância histórica dos cultos complementarizados do Espírito Santo e da Virgem Maria: a Rússia Ocidental e o Portugal Católico. Note-se que, em ambos os países se desenvolveu intensamente o culto mariano (...)».
Viajando em sua companhia através das páginas do que leio, surpreende-me este outro instante de reflexão, como se, numa esquina da cidade que foi São Petersburgo, Petrogrado e Leninegrado, parássemos um instante a conversar,ele contrapondo uma referência de Álvaro Ribeiro, no seu estudo Os Positivistas à sua própria observação: «A revolução antimonárquica portuguesa escolhe como conteúdo um republicanismo de forte influência francesa, em que o socialismo alguns anos antes vigente na doutrinação de Antero de Quental e Oliveira Martins é substituído pelo positivismo, adaptado de Augusto Compte, por Teófilo Braga e os seus partidários. A revolução antimonárquica russa escolhe ao contrário, como conteúdo, por intermédio das opções de Lenine e do seu partido bolchevique, a influência cultural do vizinho alemão, caldeando em expressão pragmática impositiva o pensamento dos germânicos Hegel, Nietzsche, Marx, Feuerbach, Engels».

14.5.15

Correspondência António Quadros/António Telmo


No segundo semestre de 2015, as editoras “Fundação António Quadros” e “Labirinto de Letras” coeditarão o livro António Quadros e António Telmo – Epistolário e Estudos Complementares, iniciativa que conta com o apoio institucional e científico do Projecto António Telmo. Vida e Obra. 
A obra, prefaciada por António Carlos Carvalho e com um comentário posfacial de João Ferreira, reúne trinta e duas cartas trocadas entre os filósofos no período compreendido entre 1959 e 1991. Sob a coordenação de Mafalda Ferro, Pedro Martins e Rui Lopo, a obra que inclui notas dos coordenadores e, também de João Ferreira, reúne escritos de António Quadros sobre António Telmo e deste sobre o condiscípulo, integrando também material iconográfico e depoimentos de autores que de perto conviveram com os dois pensadores.
As cartas dirigidas a António Quadros estão preservadas no arquivo da Fundação António Quadros e, as dirigidas a António Telmo, no arquivo de António Telmo, propriedade da sua mulher Maria Antónia Vitorino que gentilmente autorizou a sua publicação. À família de António Telmo,  bem como À Fundação António Quadros, expressamos, pois, a nossa gratidão.

1.3.15

Álvaro e Régio: filosofia e poesia


Li a correspondência entre Álvaro [de Carvalho de Sousa] Ribeiro [ver a biografia aqui]e "José Régio" [José Maria dos Reis Pereira]. E no que nela aquele assinala, a 9 de Fevereiro de 1957, de desencanto pela pouca recepção da luta que travava pela afirmação da identidade de uma filosofia portuguesa; e de desistência de rumo para outras paragens do pensamento. Afinal, tratar-se de uma filosofia que triunfaria como ser autónomo, mau grado a diatribe de quantos em detrimento dela.
Mas o que ali há que mais impressiona é a segurança do filósofo relativamente à proximidade do poeta com essa sua filosofia, que o levou, mau grado as suas confessadas «opiniões irritantes e arbitrárias» a escrever A Literatura de José Régio, livro editado pela Sociedade de Expansão Cultural, uma aventura editorial do advogado Domingos Monteiro, escritor, que viria a ser responsável pelas Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian [sumária biografia, aqui e aqui], publicado no ano da morte daquele sobre quem escreveu mas só distribuído depois do falecimento. 

No ano antecedente ao da publicação «doente, desinteressado do mundo exterior, sem energias para despender em cansativas diligências», anunciara o surgimento da obra. "Régio" sentia por igual que o fim se aproximava quanto ao que lhe fora dado viver: «apesar de geralmente me atribuírem saúde, também eu, meu Amigo, sei que a Morte pode não tardar muito a chegar», escrevera a 4 de Julho de 1968. Restar-lhe-ia pouco mais de um ano.
Culminava assim uma admiração que a a 19 de Janeiro de 1947 lhe tributara, anos volvidos sobre uma relação epistolar que a que a Imprensa Nacional-Casa da Moeda deu vida, publicando-a em Julho de 2008, com notas e introdução de Joaquim Domingues, companhia na tarde de hoje.

1.7.14

A História, do universal ao particular


Concebeu-o como uma biografia imaginária, uma «memória dos outros», escrita por um autor fictício em que se descobre a sua pessoa, a inquietação permanente do seu ser. Atribuiu ao livro toda a possível verosimilhança, de tal modo que o leitor num primeiro instante se interroga se Luiz Cotter, suposto biografado enquanto autor do Esplendor e Decadência da Casa de Áustria, teria de facto existido. Eis o magnífico Sob a Cinza do Tédio, o «romance de uma consciência».
Decidi-me a lê-lo hoje, num intervalo que a mim ofereci, cansado de há que tempos nada ler de livre escolha.
E vim aqui precisamente ao chegar a página 28, passados tantos momentos dignos de serem aqui citados, para trazer aquele instante em que o imaginário personagem atinge a percepção da «absoluta impossibilidade de se formularem leis históricas. A História estudava sucessões e não repetições, era uma ciência do particular e não do geral, procurava o mais típico, o mais individualizadamente dramático da vida colectiva».
Li e revi-me precisamente na profundidade do que dali decorre e quanto se fica isolado ao pensar assim, que «a História não carece do universal, com ser uma ciência do particular». Todo um exército de  doutrinadores e censores se nos opõem, armados até aos dentes com as armas da ideologia e da História fazendo a legitimação das suas doutrinas.

11.6.14

O ponto abissal e agónico


A ideia de crise está presente no vocabulário do quotidiano, nas notícias, no subconsciente de cada pessoa. Chegou mais evidente às economias individuais e aos orçamentos domésticos por efeito do péssimo momento do sistema financeiro, em ameaça de “crash” com todo o cortejo de lembranças por loucos anos vinte.
Mas ela é omnímoda, generalizada. Fala-se na crise da instituição familiar, na crise do sistema educativo, na crise de valores, na crise da justiça, da autoridade, de crise da língua ante o novo Acordo Ortográfico.
Ante um tal panorama é de admitir que estamos a assistir a uma decadência de civilização, mais do que à agonia de um sistema de organização social.
Outros, biblicamente apocalípticos, vaticiam o fim dos tempos, o surgimento da Besta 666, a crise da própria existência.
Um destes dias uma daquelas revistas coloridas que têm muitas páginas de praticamente coisa pouca a propósito de tudo o mais, titulava na capa “2012 o ano do fim do Mundo”. Estamos lá quase, aproveitem para a orgia final com a vida os que ainda não morreram por dentro, ainda que já aparentemente mortos por fora. Mas os media simplificam o verosímil e o leitor toma o plausível não como possível mas como certo.
E a crise ganhou assim contornos necrológicos.
No meio deste despautério verbal, em que a realidade denotativa – o território da substância que os conceitos exprimem e as definições enunciam – é incrementada pela quase ficcional realidade conotativa – esse mundo extenso dos “a propósito” – e em que os mundos periféricos das falsas analogias são chamados a aumentar o mundo nuclear das ontologias conhecidas, assim como os aterros criaram a Holanda, é caso para dizer que em matéria de crise o panorama é, de facto, crítico.
Chegados a este ponto abissal e agónico que poderei eu dizer que ainda valha a pena ser dito?
Convencer-me, em primeiro lugar, problematizando o problema, e ante alguma supresa talvez, que a crise não é uma questão problemática, sim a solução. A desagregação dos sistemas é a forma pela qual a sua entropia gera novas formas adaptativas de organização, a crise é o momento em que a síntese se atingirá pela dialéctica da antítese.
É assim, num exemplo macroscópico, com os sistemas galácticos que explodiram no cosmos, os sóis que se apagaram gerando universos gelados, de que nos chegarão partículas milhões de anos depois. Foi graças a isso tudo que a Terra surgiu e nós com ela.
É assim com o mosaico europeu que trouxe e levou o Império Austro-Húngaro, a Prússia e o Reino de Leão, a cidade de Cartago e o Reich dos Mil Anos, o Império Romano e Terra do Preste João, as Repúblicas, Ducados e Principados do que hoje é a Itália do novo Calígula, um mundo de fantasia e de precariedade.
É assim com as patologias do espírito quando a loucura vem a gerar novos patamares de lucidez incompreensível, cujo solilóquio só o seu falante autor entende, ou as bizarrias equizofrénicas da escrita em implosão verbal, sem pontuação e sem nexo, levando à glória o inenarrável e o irrepetível e gerando assim Literatura e a sua contemporaneidade.
É assim quando a Natureza, num espirro de constipação telúrica, ocupa o espaço a que tem direito, levando pela frente, em lava ou aluvião lamacento, tudo o que de humano se construiu, mundo precário, afinal raquítico, em suma liliputiano.
É sempre “em forma de assim” que a crise de tudo gera o nada, de onde o todo surge.
O futuro é, desta forma, apenas uma forma de encontro da desagregação do passado, o ponto provável do seu novo equilíbrio.
Se Deus existir e tiver sobrevivido a Nietzsche, ele não é o ponto inicial do qual tudo emerge, sim o ponto final para o qual tudo converge, espécie de buraco negro no qual a existência se afunda, em remoinho, para se reorganizar, como em cadinho alquímico, vida morta gerando vida, o ser primordial a ser semente e rosa e fruto da criação.
Mas mais do que aquele optimista convencimento se trata. A haver crise, ela é, antes de qualquer outra, uma crise existencial, antroplógica, inerente mais à pessoa do que ao indíviduo, mais densa do que a do cidadão.
Vejamos, em retrogressão mental, este mundo. Crise de cidadãos, primeiro.
A crise da cidadania revela-se, em primeiro registo, no baixíssimo nível de participação na vida cívica: não é só a escassa millitância em causas públicas, é mesmo a cada vez mais alta, e progressivamente mais esmagadora, taxa de abstenção nos cada vez mais passivos actos eleitorais, em que a Nação é convidada a referendar as escolhas das cúpulas partidárias, a que não tem acesso, e a quem se hipotecou, progressivamente menos confiante.
Há hoje, sob a República, democracia formal mas não há movimento democrático. Os partidos de Governo escolhem os seus deputados. A democracia esgota-se no acto de voto, como o poder do dono no acto de emitir a irrevogável procuração. Ao sufragar, o eleitor aliena vida, suicida-se civilmente. A urna eleitoral é o esquife da sua morte cívica. O dia de eleições é o do cortejo da preguiça. A partir dali o governo da cidade passa a ser coisa dos empregados do poder. A venda do voto é o primeiro acto de corrupção.
Mas não só: a ideia da evasão fiscal como acto de legítima defesa cidadã face a um Estado predador e depreciador é outro sintoma característico do ocaso do civismo, tal como o progressivo divórcio entre o corpo eleitoral e a classe representativa que ele elege. No primeiro caso, sente-se o Governo como uma alteridade, o terceiro pagador e pai de todos os possíveis subsídios, no segundo sente-se o poder político como o fruto de uma escolha libertadora, primeiro, e de um desprezo catártico logo no dia seguinte a ser escolhido.
Não é o Estado supra-colectivo, é o Estado infra-individual aquele que construímos. Desprezamo-lo, ao Estado, como a inimigos, consideramos os que para ele elegemos como gente de segunda, só porque sim. Faz parte da cultura de quem votou pelo poder estar na oposição, como higiene e como caução para o futuro.
Bloqueado o sistema pela sua própria natureza hipócrita, nele a falta de expressão política por participação cívica substitui-se pelas manifestações de rua, como tentativa de indignada pressão colectiva.
Assim como a cólera é a raiva dos fracos, muitos dos que se revoltam fazem-no apenas porque incapazes para a revolução. A agitação simula a mudança.
A patologia da democracia representativa é a a alucinação epilética dos seus actores que faz dos espasmódicos tumultos de rua sintoma de doença através da ilusão da cura.
Limitada a democracia pelo sistema partidário, aprisionado o sistema partidário pela cacicagem que o domina, aquela acaba por ser, não apenas a expressão do indiferenciado maior número mas sobretudo a ratificação, sem alternativa, do sentir da imensa minoria que, em esquema rotativo, forma o bloco central de interesses que domina o Estado e assim governa a Nação, dela se aproveitando.
Trata-se, no que à imediata crise de hoje respeita, de uma crise financeira, derivada da hipertrofia do mercado especulativo de capitais sobre o aparelho de produção dos países.
Crise do capitalismo, diga-mo-la, inerente ao seu modo de produção, tem o seu epicentro nas contas públicas e no sistema bancário – como cerne que são da capitalização – e só tem, na lógica monetarista do sistema que nos governa, uma única solução, a da sobrecarga tributária sobre as forças produtivas mais indefesas, tendo em vista a colecta forçada e expropriadora para o reabastecimento do mercado com os meios de liquidez de que carece para a sua sobrevivência e que se vai buscar ao aforro privado ou quando ele já não há, ao exército de reserva do desemprego forçado.
Crise de cidadania, a presente é também a crise do indivíduo, a qual se gerou com a desagregação das relações sociais.
À imagem de marca do individualismo burguês sucede na contemporaneidade a do individualismo pan-proletário, o generalizado individualismo.
À sociedade de massas sucede a atomização social. A passividade consumista, o amorfismo intelectual, a anomia moral, a atrofia do gregarismo, são hoje as características da pulverização social em que se caíu.
Molecularizada, a sociedade torna-se mero somatório estatístico, em que à personalização segue a numeração. Cada um é o número fiscal, o do BI, o código do cartão bancário, o da password sem o qual o mundo cibernético se torna promíscuo, inseguro e devassado. É pelo simples número que o mundo da informação sabe quem sou, o complexo eu.
Realidade digitalizada, tudo se decide hoje na base do inquérito e da sondagem, à diversidade do ponto de vista corresponde a padronização da resposta-típica.
A opinião tornou-se a resposta a um questionário em quadradinhos.
Certa matemática ocupou o lugar da poética e da música, e na matemática não passamos da aritmética, sociedade de adição, de subtração, de multiplicação, de alguma divisão. Tudo passou a ser mensurável, por isso tudo passou a ser contável, pior, comparável. Num mundo de fracções a ânsia tornou-se encontrar o menor denominador comum. O abaixamento do nível médio é a perversa consequência do desejo da redução do múltiplo ao uno.
As redes sociais, essas aparência de comunidade e de aldeia global revisitadas, são hoje janelas de comunicação de solidões desencontradas.
A imediatividade discursiva que a net permite gerou o nada comunicacional, reiterativo, em cíclico copy paste, em que se amputa a imaginação e se legitima o plágio.
O «gosto» alheio como resposta a um post próprio evita o ter de dizer porquê. A comodidade expressiva internáutica torna o palestrante um símio dactilógrafo de sentimentos singelos padronizados.

+

Surgem aqui os traços psicológicos do nosso tempo: primeiro, a depressão como forma reduzida, mas por isso tolerável, da angústia existencial, depois o triunfo do contável no novo mundo técnico do fungível e do computável.
A angústia, ao perder a dignidade de categoria existencial de manifestação do desespero humano, encontrou na tipologia terapêutica a forma redutora que a torna uma mera patologia asténica, que a química farmacológica se candidata a tratar.
Uma nova família de fármaco-dependentes, adictos a drogas legais, garantem assim o equilíbrio básico que os mantém dentro da convivialidade aceitável e lhes permite serem forças de trabalho aproveitáveis no aparelho produtivo que ainda funciona em estado pré-falimentar, que os normaliza, em suma, garantindo-lhes liberdade de circulação ambulatória no hospício em meio aberto que são as sociedades contemporâneas e onde “esses loucos que nos governam” são arquétipo, modelo, e forma de autorização para o viver respeitado, ainda que inimputavelmente.
E, no entanto, antropologicamente, ela, a angústia, é, enquanto intranquilidade fazedora do génio, ou enquanto prostração anestesiante do comum mortal, sintoma daquele inacabamento, daquela incompletude do homem, que o caracteriza como ser defectivo, inacabado, irrealizado, lançado, porém, ao mundo, ainda em gestação, da borda fora da barca de deuses cruéis que o condenam, pedra bruta, à derelição, ao abandono, à entrega ao jogo das circunstâncias até que em pó final se transforme, Sísifo da sua eterna tentativa de refazer-se.
Só que hoje não há angustiados, sim deprimidos. O Prozac, enquanto Viagra do Espírito, resolveu a questão, tal como o comprimido azul permitiu a toda a luxúria sexo.
Além disso ao extâse místico sucedeu o orgasmo venéreo, as entranhas do corpo passaram a ser flatulência sucedânea dos arroubos da alma.
Ei-la, na sua intemporalidade a crise dos nossos dias.
Falta autenticidade ao humano. A metamorfose do ser passa pela redenção. Tentaram-no os totalitarismos políticos que pretenderam criar não apenas a “Ordem Nova” mas o “Homem Novo”. Em vão. A pequenez dos resultados contrastou com a delirante idealização dos projectos. Ficaram, na arqueologia do terror, os gulags e as câmaras de gás, os campos de reeducação e os reformatórios psiquiátricos, os campos da morte e o patíbulo dos condenados, o genocídio em massa e o suicídio individual.
Tentam-no as sociedades iniciáticas, esotéricas ou sacramentalizadas. Debalde também. A mesquinhez do interesse conspurcou o templo, profanizando o culto e o rito. A espiritualidade passou a ser resíduo monacal de uns quantos segregados, a transcendência uma alucinação dos incompatilizados com a vida.
Termino.
+
A vida é uma petição de princípio. Para nasceres é preciso estares vivo. Surge aí logo, no corte do cordão umbilical, no instante do primeiro grito de espanto e de dor, o estado de necessidade, a luta pela sobrevivência.
O homem é o único ser para quem o mero instinto não permite, porém, essa sobrevivência.
Pode morrer-se sem se ter vivido mas apenas sobrevivido.
Eis, aqui, no seu âmago íntimo, a crise de todas as crises: o mundo vegetativo de corpos que caminham para a mineralização, julgando-se humanos, escassamente humanos.
Comparado com o défice de almas, o défice das contas públicas é assunto para intendentes.
Do Oriente esfíngico e fatal chega-nos o sinal e o símbolo: a nossa paganização é a nossa perdição. Jogando aos dados quanto à sorte do pobre Job, o velho Deus, num momento de dormência, perdeu a favor do Diabo. A danação surgiu aí. O Ocidente tornou-se Poente.
Um dia acabará tudo. A vida, vale, porém, a pena. Não por ser uma inevitabilidade. Sim porque é uma milagrosa probabillidade. No labirinto dos tempos um dia um homem e uma mulher... e tudo assim surgiu e surgirá, nem que tenha de ressurgir porque assim está escrito.
Talvez haja esperança onde faltar a fé.
Na síntese de tudo quanto se contradiz, no menor denominador comum a quanto possa ser decência, o Homem deve ser o que é. A crise nasceu no dia em que alguém tentou que ele fosse o que devia ser.
A norma matou o ser. Com a primeira lei surgiu o primeiro carrasco.

[escrito em 2013, encontrei-o hoje]

16.2.14

Que obra mais ante o sentimento?


Pode escrever-se e tanto se tem escrito sobre o Autor ou sobre a Obra. Deve evitar-se a minudência íntima, com que tantos redigem biografias de trivialidades, para que ainda exista a decência do respeito. Mas não ante o sentimento quando singelo, o que exprime quanto provém do coração, pois é mais filosofia que quanta racionalidade o frio cérebro possa compor. 
É esta a essência profunda do ser, o precário fugaz da sua existência. 
Um autógrafo, o flagrante de uma vida. 
Que tudo se torne no que veio a ser, que importa? 
O milagre do instante, essa é a verdade do Amor, numa singela dedicatória. 
Que obra sua valeria mais neste preciso momento para este Homem, que totalidade de uma biblioteca que houvesse já escrito, seria mais do que a ternura destas linhas? 

13.10.13

Pelo Sinal...

Símbolos e a via simbólica, sinuoso caminho, helicoidal, labiríntico e por isso perplexo, e o Sinal, que procuro, na desordem primordial até aos caos final, entre o acaso que me gerou como ser e a fatalidade que me ditará a transmutação no que vier.
Tudo isso, esta manhã, de Domingo, ouvido José de Almada Negreiros, poeta d'Orpheu, Futurista e Tudo!

15.9.13

Maquiavel (texto final)


Não a publicarei integralmente, a apresentação que redigi para a edição de O Príncipe que a Editorial Presença publicou. Deixo aqui ficar o final, que se junta aos cinco excertos que aqui divulguei [e que podem ler-se aqui].
Escrevi tudo em 2008. O trabalho coroou um esforço de empenhamento no estudo da obra integral do "Secretário", incluindo os textos políticos, a poética, o teatro, a correspondência. Polémico, por trazer uma outra visão do biografado que não a odiosa comum, foi trabalho praticamente inútil: nem uma crítica, reparo, reprovação, sim, o desprezo do silêncio. Oficialmente este escrito nunca existiu.

[...] Está feita a apresentação da obra. Que me perdoem os especialistas a ousadia de pensar que este meu acto de atrevimento é uma tentativa de libertar o Florentino do cárcere a que o condenaram todos os que dele fazem instrumento de confirmação ou de infirmação das suas ideias apriorísticas.
Causa de facto viva impressão que um mesmo homem, sobretudo por causa de um mesmo livro, mereça qualificativos tão díspares entre si como se de um Anjo ou de um Demónio se falasse.
Maquiavel ainda hoje causa paixões.
São os que o reduzem ao que escreveu neste livro, contra os que exigem que se leia tudo o que há dele. Junto-me a estes, pois urge ler o Maquiavel republicano para que se entenda este tratadetto, rir com o Maquiavel obsceno de La Mandragola para compreender o poético autor dos sonetos de delicado enamoramento, descobrir o todo para entender a parte.
São os que vêem nesta obra um manual de instruções para tiranos, contra os que nela vêm um manual de sobrevivência para que os tiranizados sobrevivam à tirania. Não me juntei a nenhum deles, pois acho que O Príncipe foi apenas uma tentativa de mostrar aos que eram aquilo que tinham de ser, para continuarem a sê-lo.
São os que encontram aqui doutrina e ciência no campo da política contra os que só acham pragmatismo e oportunismo no mundo do governo. Percebi que Maquiavel escreveu este texto misturando um interesse a muita observação e rematou com uma proclamação; uma obra destas corre o risco de ir do zero ao infinito das categorias dos que vivem a dissecar pensadores à falta de pensarem sobre o que eles pensaram.
Niccolò Machiavelli é, sobretudo, mais diverso do que aqueles que, com estupidez militante, o reduzem ao homem unidimensional.
Primeiro, ele teve o condão de, através de toda a sua obra, desmascarar a política. Um jornalista brasileiro, ao escrever sobre a edição de um dos seus livros disse, com humor, que Maquiavel promoveu um verdadeiro strip-tease do modo de pensar na política, começando por tirar as luvas.
Segundo, ele teve a lucidez de mostrar como é que os políticos tiranizam também pelo marketing da sedução, essa violência doce sobre as inteligências. O nosso Padre António Vieira, que está livre do pecado de ser maquiavelista e tem a virtude de ter pensamentos que se aparentam aos do Florentino, escreveu: «na perda de uma batalha arrisca-se um exército, na perda da opinião arrisca-se um reino»[1].
Terceiro, ele deixou a cada um a sua moralidade, para que, mostrando a eficácia do mal, pudesse ter a nobreza de escolher o caminho dificultoso do bem. Tal como Vieira, a propósito de Dom João IV, ele poderia ter afirmado que um tal Rei «sabia reinar porque sabia dissimular; e reinou porque não dissimulou»[2].
Por fim, ele convocou, no final de O Príncipe, um chefe que desse à Nação dos italianos a sua unidade, à Pátria a sua mítica, ao Povo a sua vontade de viver, que conduzisse a Itália à República, através de uma política que não invocaria o Santo Nome de Deus em vão.
Maquiavel ousou enfrentar os que, reclamando-se a voz de Deus na terra, insultando com o seu comportamento pecaminoso os fundamentos do cristianismo, entendiam que era na moral cristã, que eles ofendiam diariamente, que se deveria encontrar o fundamento da legitimidade da política: o cristianismo era, para ele, um obstáculo, por ser uma moral decadente. Olhando em volta, vendo quem eram os Papas e como se comportavam – Roma veduta, fede perduta – entende-se bem porquê. Mas a Cúria romana não lho perdoaria, porque consenti-lo era abrir a porta ao cisma da Reforma.
Em 13 de Outubro de 1517 o monge Martinho Lutero afixou na Igreja de Wittenberg as suas 95 teses sobre a questão das indulgências, o modo como a Cúria romana encontrara de se financiar – nomeadamente para a construção da Basílica de São Pedro e pagar aos banqueiros Függer – através da remissão a dinheiro dos pecados inclusive dos mortos. Tal proclamação ateou como um rastilho. Denunciado embora pelos dominicanos como herético e excomungado pelo Papa Leão X, Lutero assistiria à disseminação das suas ideias, que traduziam a doutrina Protestante: o livre exame, o sacerdócio universal dos crentes, a simplicidade ritual do culto, a negação do livre-arbítrio, em nome de uma concepção pessimista sobre a natureza humana.
Niccolò Macchiavelli foi e é a totalidade que se pode conter na excelência de uma pessoa, a equação dos defeitos e das virtudes: conselheiro da crueza da guerra, diplomata ao serviço da paz, há na sua figuração conhecida um sorriso estranho[3], enigmático como o da Gioconda, a Mona Lisa, por antonomásia a mulher da Renascença, em torno da qual ainda hoje alinham hordas de curiosos, um sorriso de quem, através da ironia, se ri do mundo e do sofrimento que a vida consegue causar na sua perpétua renovação.
Quis trazer-vos um Homem e não um monstro, quis mostrar que há em Roma quem beatifica Savonarola depois de ter excomungado, enforcado e queimado Savonarola e hoje disfarça o crime condenando Maquiavel.
Quis – nestes tempos em que se desespera quanto à possibilidade de redenção da sociedade através do Estado – deter-me sobre este exemplo de realismo pessimista quanto ao Homem e de individualismo heróico em prol do ressurgimento da Pátria.
E porque de um Homem se trata, termino, com um Niccolò Machiavelli que na sua correspondência tem a fraqueza de confessar a sua fragilidade amorosa, mesmo o perder-se na luxúria sensual. Disse-o numa carta a Francesco Vettori, a 4 de Fevereiro de 1513:

«E porque vos assustais com o meu exemplo, lembrando o que me fizeram as setas do Amor,  sou obrigado a dizer-vos como me governei com  ele. Com efeito, deixei-o agir e segui-o por vales, bosques, penhascos e campos, e achei que me fez mais mimos do que se o tivesse maltratado. Por isso, tirai-lhe a albarda, tirai-lhe o freio, fechai os olhos e dizei: vai, Amor, guia-me, conduz-me; se for para meu bem, será para teu louvor; se for para meu mal, será para tua desonra: eu sou teu servo.»[4].

É o mundo de Dioniso, um Maquiavel em reiterado enamoramento, gozando a «alegria silenciosa» do amor, em arroubos líricos como quando, no seu Albergaccio, alternando a rude existência e a escrita deste livro, se apaixona por uma vizinha «una creatura tanto gentile, tanto delicata, tanto nobile e per natura e per accidente, che io non potrei laudarla né tanto amarla che la non meritasse piu»; ou, perdido o tino, liquefeito em vulgares obscenidades que na nossa literatura se chamariam vicentinas, escreve boçalidades de gargalhada plebeia, libertador diurético talvez das retenções da conveniência social.
Faltava-me isso para lhe compreender o enigma, sensual entre amorais pregando moralidades, virtuoso mestre na arte de defender a virtù, contraditório entre a dor e o riso, ambiguamente verdadeiro, enfim, humano, e porque profundamente apaixonado, demasiado humano. A sua vida resume-se numa frase do capítulo XVII deste livro: «quem não ganhar amor que evite o ódio». Ele perseguiu o Amor ideal, entre a cidade dos homens e o afago dos amores venais.
Conseguiu-o através da ironia do sorriso, rindo-se de si e de nós desdenhoso: contemporizou com a tirania que o perseguiu, foi desprezado pela nova República que quis servir. Incerto entre os homens, perdido entre as mulheres, morreu do menos poético modo, falhando-lhe os intestinos. Deixou aos filhos os restos da pobreza.
Um dos seus textos poéticos chama-se O Capítulo. Dividiu-o em partes, escreveu-o ao longo dos anos. Cada um desses tercetos tem um nome que é um tratado de filosofia condensado numa só frase: fortuna, ingratidão, ambição, ocasião. Cada ser humano revê-se ali, como a um espelho.
Ao contrário do que pensam os académicos, as grandes obras são mais o produto do sentimento do que do pensamento, a vida a escoar-se, «nervos, vida e História» em cada página.
Eis o Maquiavel que encontrei. Podia ser qualquer de nós. Em cada um dos homens contem-se a totalidade da Humanidade.


[1] Sermão pelo bom sucesso das nossas armas.
[2] A frase completa é um convite à leitura do Sermão Histórico e Panegírico dos anos da Rainha Dona Maria Francisca Isabel de Sabóia, de que faz parte: «Sabia reinar, porque sabia dissimular; e reinou, porque não dissimulou. Prezava-se só da justiça, afectava o nome de justiceiro, e era justo. Para os criminosos severo, para os pleiteantes igual, para os ministros senhor, para os vassalos pai, e para todos rei.»
[3] Viroli, na obra citada, constrói todo o seu registo em torno deste sorriso, «un sorriso di sfida, che muore sulle labbra senza avere il calore di attenuare la pena che serra il cuore» [página 131]
[4] Encontrei a carta traduzida no prefácio de Manuel Mendes à edição de 1945 de O Príncipe. Consultei a versão original, que cito. Registo aqui o modo como foi traduzida por Mendes: «Dizeis que estais assombrado de saber o que as flechas de Cupido me fizeram. Talvez vos deva explicar exactamente a minha política para com ele. Em suma, eu deixo-o livremente agir como entenda, sigo-o com docilidade por vales e montes, florestas e campos, e certifico-me, no final de contas, que ele me tratou muito melhor, do que teria feito se eu lhe tivesse resistido ou lutado com ele. Ainda o melhor é aliviá-lo de sela, de freio e de rédeas, fechar os olhos e dizer-lhe: “Vai, Amor, sê meu guia, conduz-me – o bem será a tua glória, o mal para o teu descrédito! Não passo de teu escravo”(…)».

31.8.13

Adivinhar


Não sabem, os do Império da Razão, os súbditos do racionalismos, os limitados pela lógica e pelo pensar apenas com a cabeça, o valor que tem o adivinhar. E como as adivinhas, jogo de paradoxos enigmáticos, são um exercício para se chegar a essa forma superior que é a do pressentimento, a do conjecturar, o sexto sentido dos que sabem sem saberem porquê.
Por alguma razão adivinha e adivinhar têm o mesmo étimo. 
Tudo isto porque um Secretário de Câmara Municipal, que o foi por Elvas no final do século dezanove, recolheu, com dedicação e amor manso, o reportório de adivinhas do seu Alentejo.
O livro encontra-se aqui, bem como um apelativo sumário. Alberto Marques fê-lo, por gostar de livros.

16.5.13

António Quadros, o meu testemunho



Eis o testemunho que apresentei no colóquio evocativo dos vinte anos passados sobre a morte de António Quadros.

Há livros que, ao frequentá-los, marcam, o que os da fria gnoseologia chamam, “cortes epistemológicos”. São clivagens no pensamento e na própria essência do ser pensante.
Sucedeu-me isso com António Quadros. Por isso aceitaria deixar este testemunho.
De testemunho estranho se trata, este meu, porque sendo o de uma pessoa que se clama de uma outra, eu a convocar-me dele, nunca os nossos corpos se encontraram em qualquer das esquinas da coincidência possível, o meu testemunho não tem provas do efeito, sou apenas o lugar íntimo onde se situa a causa do que se espera possa vir a ter amanhã.
António Quadros frutificará, germinando a semente que deixou. A improbabilidade tornou-se facto. Falarei, pois, daquilo que sou, vindo dele.
Provenho de uma geração que, numa significativa parte, se formou sob a bandeira do marxismo, não como mais um método analítico da economia política, sim como doutrina totalizadora, a dar explicação, programa, bandeira, política e meio para a proclamada única interpretação e para a internacional transformação do mundo, como ficou na célebre tese do autor do Das Kapital sobre Ludwig Feuerbach.
Mas eu não sou o meu tempo, por ser a ele antecedente. Escapei, pois, incólume, a essa colectivização da pessoa.
O que me tornou naquilo que sou, foi, sim, o aluvião sensitivo dos que, vindos dos escombros trágicos da segunda guerra me transmitiram do exílio as dores, da barbárie totalitária a vergonha, os que sentiram o opróbio da humana angústia, os que viram no Homem a criatura defectiva, imperfeita, em busca do ómega possível do seu encontro com uma mística sem deuses, em perpétua derrelicção, antropologia existencial do ser, situados, cercados pela História e pela genética, livres, porém, pela contingência de um acaso cósmico, os que, entre nós, tudo isso sentiram neste modo triste de ser-se português.
Estava, pois, por isso mesmo, preparado para o encontro desde que, aos dezasseis anos, não tendo ainda lido os clássicos russos, lhes conhecia, da estepe cultural, a alma, tão próxima da nossa na sua nostalgia. E tinha sentido a náusea e sobretudo a queda. E o homem revoltado. Preparei-me então para o Sísifo da vida, roendo-me dos fígados a peste que me tornara um ser isolado do colectivo dos da minha geração.
O pragmatismo amoral que se apoderou-o subitamente no Verão passado de 1975, de muitos dos pequeno-burgueses de fachada socialista, que já eram, encapotadamente então, o que o futuro lhes reservava, tornando-os hoje gestores materialistas do capital apátrida e suas perversões, passou-me ao lado, porque de ideologia se tratava apenas, tecnocracia de acção a fingir-se, através da dialética, ciência, positivismo utilitário, ideias hipócritas feitos carreira, seguro-caução.
Eis o vazio então em torno de mim, na hora agónica em que nenhum outro povoa o amanhã da nossa existência. Nem a frescura de asas desses seres intermédios, mercuriais ou herméticos, que ele viu.
Fruto de negações sucessivas e desencontros com a minha época, faltava-me também então um espaço a que pudesse chamar Pátria.
É que eu provinha de Angola, em viagem, e chegara a este rectângulo vindo de um Império a desabar. Em 1962. Portugal, no limite a que se confinou, devolvido ao princípio da gesta argonauta, já era uma saudade do futuro, o mito profético das terras do Malpassar. A emergência da Nação Lusíada compreendi-a com ele, como mistério, imanência, destino, comunidade de vivos e mortos, diáspora, para além dos regimes, governos, intendências. Devo-lhe o patriotismo, esse inconsciente colectivo feito identidade transcendental do ser.
Li-o então, também no momento em que, jurista em formação, Leibnitz e a sua lógica deôntica, ensaiando o cálculo aplicável a tudo quanto fosse a norma e a Lei, me atraía, com a força de um magneto intelectual, e com ele o império da racionalidade, único critério que eu respeitava – que limitado eu era, sem saber! – de razão e da verdade; e de bondade e de beleza, a redução do ser ao denominador comum do ímpar magnífico.
E, permitam, o abuso da pessoalização. Naquele tempo, e durante tanto tempo assim foi, lia Simões da Fonseca e juraria que as sinapses neuronais eram homologias epistémicas da aritmética digital, que a lógica booleana tinha tornado operacional e Allan Turing instrumento de computação universal. E von Neumann e a sua teoria matemática dos jogos. E Nobert Wiener e a Cibernética, a mãe de toda a interdisciplinaridade. E trocaria a inteligência humana pela inteligência artificial dos servo-mecanismos, da robótica, sei lá o quê de inhumano, qualquer Golem e Companhia do “Espírito na Máquina” de Arthur Koestler. E julgava-me contemporâneo quando, para o ser, teria, como Leonardo Coimbra, de dar tudo por írrito e nulo e recomeçar.
Surpreendi-o então, imagine-se, a António Quadros, firme e cavalheiro, a polemizar com António Sérgio, não porque contra o espírito seareiro no que isso implicava de programa cívico pela democratização da República, não enquanto filho da “política do espírito” de António Ferro, seu pai, sim como inteligência contemporânea em acção contra o reducionismo, geometrismo cartesiano afinal revisitado, negação do curvilíneo pelo rectilíneo, do complexo pelo simplificado, do enigmático pelo evidente, do diverso pelo uniforme.
Corajoso, não se deixou intimidar ante os que, sob falsa tolerância, anatemizavam todos os que não vinham da laicidade jacobina paramentados, ou pelo radicalismo político protegidos, jogados, nada democraticamente, afinal, para o lixo como “cadaveroso reino da estupidez”.
A coerência é uma linhagem. No seu caso um dever para consigo, antes de ser um respeito para com os seus. Uma militância.
Crúzio foi o homenageado então contra esse mundo que, julgando-se moderno era, afinal, obsoleto por não ser antigo, faltando-lhe da Tradição os arcanos, e que – fantásticas palavras suas as suas, como golpes certeiros – «por isso polarizou e orientou os desejos obscuros de uma burguesia desenraizada, céptica e materialista, à procura de justificações ou alibis para o seu pragmatismo de curto fôlego».
Só que eu tinha chegado então, tanto tempo perdido, ao 1982 da minha vida. E sentia, febril e marítimo, o nascer de um volante dentro de mim.
Foi precisamente naquele livrinho seu, dedicado à “Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista” que tudo começou. Ainda em dois volumes, da Guimarães. A partir dali, surgiu-me a revelação: Pascoaes e a bruma densa do Marão, pensamento granítico e névoa poética, Fernando Pessoa, pela primeira vez trazido do óbvio paradoxo de um Álvaro de Campos, para o esotérico de que ele é, em permanente desassossego, enigma e chave, ambos os seus dois poetas, e assim o achou João Bigotte Chorão.
Pela sua mão chegou-me, arrumada já a dispersa estante, toda a filosofia portuguesa, o seu antes primordial com Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro e José Marinho, e, logo todos, de Agostinho da Silva, errante, a Dalila Lello Pereira da Costa, em íntima clausura, inclassificáveis na sua indeterminação, Lima de Freitas e Margarida Cepeda, na simbólica da expressão artística, Francisco da Cunha Leão e, através dele o psicologismo do homem lusitano enquanto português e por isso não ibérico, todos quantos, afinal, que recolheu para “Memória das Origens”, dez anos depois. E não mais parou de jorrar essa fonte extraordinária de saber.
É verdade que o encontrara porque me perdera de mim naquilo em que a vida me traçara a rota desaustinada a que se chama Destino. Percebi-o depois, em retrospectiva. Contemporâneo na docência universitário de António Braz Teixeira não dei conta que um fio filosófico nos unia, imperceptível, impossível de se revelar.
Com o País a arder, António Quadros então escrevia. Em 1976 escrevia porque pensava, enquanto tantos desertavam ou se abstinham de intervir, e outros se iludiam ante a miragem salvífica de uma Revolução, que prometia liberdade e socialismo.
As elites salvadoras despareceriam, sem descendentes ou sucessores, o povo viveu a sua hora de festim de ilusões macabras.
Não o pressenti então, nesse seu livro vivido no campo da honra, o “Portugal Entre Ontem e Amanhã”, tão alheado que estava eu do que ele simbolizava, e como agora o leio, nesse escrito cauto, presságio da inatingida «eticidade de uma política nacional autêntica», e eis-nos hoje ante os tempos da anomia integral, a dar-lhe razão no seu contido entusiasmo face ao que, em tresloucada aceleração, ruía do edifício moral da Nação que é o que precede os Estados e seus Governos.
“Franco-atirador” já fora ele, aliás, em 1970, compilando crónicas que editara no “Diário Popular”, juntando nesse livro da sua “Espiral” o tudo e o nada que fazem do pensamento intervenção, da opinião arma. Nesses tempos, em que a liberalização política do País estava por vir, antecipou-se ele em liberdade, a do espírito livre. Conteve a forma, não o tema.
Mas foi a filosofia da existência, que marcaria o primeiro e porventura o mais vincado elo familiar com a sua pessoa. Atento, meticuloso, soube valorizar no romance “Mudança”, de Vergílio Ferreira, o corte com o neo-realismo e com os limites que a literatura-planfleto colocava à pujança criativa da forma, como a inteligência de “António Vale”, esse pseudónimo literário de Álvaro Cunhal, já o havia pressentido para as páginas da “Vértice”. Foi em 1959, sob a chancela da “Sociedade de Expansão Cultural”, que nos ofereceu essa percepção da fenomenologia cultural da ficção. Ali estavam todos, Régio, Agustina, tantos…
Dera-se, íntimo, a esse drama humano que é a sua existencialidade, através da qual, como tão bem se exprimiu no livro “O Movimento do Homem”, a criatura se vê e a todos os outros «através de um véu emocional, directo e perturbante, que intranquiliza todo o saber, que desequilibra todo o silogismo, que problematiza todo o valor (…).
Faltava a desocultação da Atlântida, essa forma extraordinária de percepção da longa persistência criacionista que é a Nação Lusíada, relutante à decadência, resistente à adversidade, em fidelidade e infidelidade a uma razão superior, nauta de um projecto áureo, sebástica talvez, ainda por cumprir.
Difícil, nesta agonia do momento, em que o “patriotismo de palha”, de novo fugaz e ingénuo, obnubila a verdadeira servidão a que nos acorrentámos, às galés da usura e às Índias europeias da ilusão atroz, enxergar, entre a regressão e a menoridade, a História do porvir, prolegómeno do futuro necessário.
Mas o que virá já está. É, pois, tempo de esperança.
Com António Quadros aprendi que, para edificar há que encontrar fundações, como na árvore o crescimento é a razão das suas profundas raízes.
Em escavação interior, buscando os fundamentos do eu, como precária pessoa, e do nós, como Nação sobrevivente a mais de oitocentos anos, segui-o, até me esgotar de exaustão, perseguindo a “resistência ao trágico”, nas Conferências do Casino ante o Ultimato, na perpétua bandeira da “Renascença Portuguesa” a desfraldar-se a Norte, e em tudo quanto, da História à Filosofia, onde encontrou, em arqueologia cultural, marcos miliários messiânicos dessa “ideia de Portugal”. Na busca, em saudade, de uma compreensível religiosidade incorpórea, a do divino Espírito Santo que ilumine.
Não terei o impudor de dizer quanto a António Quadros que o sei. Apenas que o tenho comigo. Eis o que vim dizer. Para o livro evocativo dos dezoito anos volvidos sobre a sua morte escrevi: «se há momentos de uma filosofia que marca um destino, o que ele escreveu sobre os males do positivismo marcou-me a rota mental». Não disse então mais, deu-me acanhamento.
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Termino e alonguei-me. A bondade de Pinharanda Gomes, ser de incorruptível carácter, acreditou que «a biografia pública de António Quadros coincide com a sua biografia íntima: uma vida de reflexão, uma vida a escrever, a comunicar». Talvez não. E não apenas porque há o Amor, essa força telúrica, vinda de um qualquer ponto do que existe, a Rosa Mística, razão e mistério. E sonho. Escreveu “Anjo Branco, Anjo Negro”, a homenagem à Mulher Eterna, a «transcendência que invoca uma reintegração».
António Quadros morreu «com discreto pudor». Sabia, pela verdade que se lhe revelara, que apenas se ausentaria o corpo em que em si viajava a alma. É seu o verso escrito em 1949, o ano em que nasceu o meu corpo: «Um grande azul, sem fim e sem distância. Um doce vento, simples, sem motivo. Uma terra fecunda de mistério. O Universo flutuante, sem limites».

29.8.12

Um homem à mercê da História (5)


É o quinto excerto do texto de apresentação que escrevi para a edição da Presença de O Príncipe, de Maquiavel. Séculos volvidos continua a ser necessário defender-lhe a memória às mãos dos detractores. Posto no Index dos livros proibidos pela Inquisição, queimado em efígie, ainda paira sobre ele a maldição da incompreensão.

Quando morreu, a 21 de Junho de 1527, Maquiavel tinha visto publicar menos do que escrevera. Este livro era um dos seus inéditos.
E, no entanto, se o seu nome alcançou a perenidade que leva a que actualmente seja conhecido mesmo pelos de menor cultura, isso deve-se ao modo como foi, sucessiva e contraditoriamente, interpretado um livro, este livro, que só veria a luz do dia cinco anos após o decesso do seu autor.
Há autores que escrevem obras para se libertarem, através delas, da lei da morte que é o esquecimento, Maquiavel ficou prisioneiro de um livro imortal porque ainda hoje lembrado, mas que não publicou enquanto viveu e nem é seguro que tivesse sido escrito com intenção de ser levado aos prelos.
O futuro reconstruiu-lhe o presente, inventando-lhe um passado.
O Maquiavel com que hoje nos cruzamos não é, assim, o mesmo cidadão florentino que os seus patrícios julgavam conhecer, mas um outro que o tempo reformulou.
Ao escrever esta introdução, não consigo resolver a dúvida existencial sobre se é mais real o vivo do que o póstumo, o contemporâneo visível ou o histórico reconstruído sobre os despojos do que foi. Toda a biografia é, por isso, nessa íntima parte, uma auto-biografia.
O enigma de Maquiavel nasce logo com o modo como foi escrita a que passou a ser a sua obra mais conhecida. Sabemos em que estado chegou ao seu albergue rústico: expulso do Palazzo, a extensa família a cargo, a ter de humilhar-se, pedindo, sabendo que poucos se arriscariam por ele, tendo do mundo e dos homens certezas vis e sabendo que os fortes tiram dos fracos, os espertos tiram dos fortes. Tudo isso ficou dito. Mas o que fica por explicar é como é que o produto de um tal momento, de penúria e de dependência, veio a alcançar a glória da imortalidade quase seis séculos depois da sua morte.
Claro que tudo ocorre numa época que trouxe para a História da Cultura momentos, como hoje soe dizer-se incontornáveis. Nessa extensa galeria, Maquiavel não está só, acompanham-no, na Literatura Ariosto e Tasso, na arte Rafael, Michelangelo e, em suma, tantos outros como Leonardo da Vinci, Dante Alighieri, Boccaccio, Petrarca…
Mas o que dita a especificidade da projecção intemporal deste seu pequeno livro são circunstâncias peculiares e, na sua mais rica dimensão, extrínsecas à própria obra.
Encaremo-lo objectivamente: lido a sublinharem-se as máximas de cunho geral que contém e que dele fazem um livro de ciência política ou de doutrina política, ou de filosofia política, O Príncipe é algo que não surpreende pela magnificência, nem pela densidade ou profundidade[1].
Situado na época ele é, não mais um dos muitos livros para príncipes e senhores[2] mas, enquanto livro de observação fria, o fundador da ciência política, libertando-a da subsidiariedade face à Moral e à Teocracia, o que só tardiamente lhe seria reconhecido.
Terá sido o modo como foi sucessivamente encarado a partir da sua divulgação pública, em 1532[3], que ditou a sua fortuna, sobretudo as apaixonadas polémicas que o florentino suscitou.
Primeiro, o texto terá circulado em cópias avulsas, restrito o seu conhecimento a círculos limitados, a cujo destino o Papado se mostrou indiferente. Mas, como vimos, em 1559 estaria no Index como livro herético.
Ao findar o século dezasseis Maquiavel tornou-se persona non grata nos círculos católicos, começou a ser motivo de curiosidade por parte dos intelectuais de toda a espécie, tornou-se espelho da conduta de alguns políticos desejosos de aprender a arte do poder.
Na católica Península Ibérica a obra de Maquiavel só podia ter sido recebida com repúdio, por entrar em rota de colisão com o núcleo essencial do pensamento filosófico-político aqui dominante e, sobretudo, com o pensamento jesuíta.
As hostilidades abrem-se com D. Jerónimo Osório da Fonseca, bispo de Silves, quando publica, em 1542, o Lusitani de Nobilitate Civile, Libri Duo, ejusdem de nobilitate Christianna Libri tres[4].
Trata-se de uma das mais ilustres figuras portuguesas do século dezasseis com maior projecção externa, autor de um De Vera Sapientia, traduzido em português como Tratado da Verdadeira Sabedoria[5]. Terá nascido em 1506 e morreu em 1580. Estudou em Salamanca, em Paris e em Bolonha. A ele se deverá o haver inspirado D. João III na decisão de chamar os jesuítas para Portugal.
Osório enfrenta[6] a acusação que Maquiavel lançara sobre o cristianismo, a de haver sido o fautor do enfraquecimento da Humanidade. Considerando que «os escritos daquele homem fazem tamanho ultraje à nobreza cristã» diz que, apesar de morto aquele com quem antagoniza, «não hesitarei, confiado na protecção de Cristo, em travar peleja com aquele sulerado» [sic].
A sua refutação assenta em três linhas argumentativas: mostrar que os cristãos sempre deram o exemplo de coragem e constância no sacrifício; explicar a verdadeira razão da queda de Roma; e enfim, valorizar as virtudes militares e combativas dos cristãos.
Trata-se de um ataque não puramente teológico. «Contestando o sentido anti-romano da obra do Florentino, o Bispo Osório descobriu, embora o não explicitasse, o traço de união entre Maquiavel e os Reformadores (…)» sublinha, em aguda observação, Martim de Albuquerque.
Em 1595 outro jesuíta, este de ascendência galega, Pedro Ortiz de Cisneros (de Ribadeneyra) [1527-1611], publica o seu Tratado de la religión y virtudes[7]. Dedicado a Felipe, que seria Felipe III, exorta-o a seguir o caminho dos seus antecessores, nomeadamente imitando os Reis Católicos, contra «a falsa razon de Estado».
Escritor prolífico, com escritos ascéticos e biógrafo do fundador da Companhia de Jesus, Santo Inácio de Loyola, o pensamento legitimador de Ribadaneyra é o extremo crítico do sentir do Secretário. Se o convocamos aqui é, apenas, para ilustrar alguns dos equívocos em que se tem amiúde caído em torno do agregar dos pensadores «portugueses» anti-maquiavelistas. No caso de Ribadeneyra [ou Ribadeneira, como há quem escreva, numa variante aportuguesada da palavra] o problema nasce do facto de ele não ser português e ter sido, aos quarenta e oito anos, apenas responsável assistente na organização da Sociedade de Jesus por Portugal e Espanha, sendo que a sua doutrinação teve aqui eco tardio, salvo o Flos Sanctorum, traduzido por João Franco Barreto e publicado em 1674.
O mesmo se pode dizer de Francisco Suarez [1548-1617], um granadino, também jesuíta, jurista, que depois de ter publicado a obra De Fide se mudou para Portugal, leccionando na Universidade de Coimbra, onde publicou, em 1612, o De Legibus e no ano seguinte o Defensio fidei catholicae.O seu pensamento foi votado a um significativo desinteresse durante os séculos dezoito e dezanove, de um modo tão simbólico quanto o facto de o Marquês de Pombal ter mandado instalar, na Igreja de São Roque, um órgão que praticamente sepultou das vistas o Doctor Eximius que escapara, porque morto, à expulsão decretada por este Carvalho e Melo.
Cito-o como um exemplo típico de alguém cujo anti-maquiavelismo é uma decorrência óbvia de toda uma construção diversa daquela outra em que se funda a lógica de O Príncipe e não porque visasse expressamente a sua refutação, como por vezes é entendido.
É evidente que quem tem a inteligência de escrever que «o poder dos príncipes cristãos, em si mesmo, não é maior nem de distinta natureza do que foi entre os príncipes pagãos; logo, em si próprio, não tem outra matéria nem outro fim» [De Legibus, III, XII, 9] só pode seguramente ter de coexistir com um anti-maquivelismo mais sofisticado do que o redutor abjeccionismo.
É certo que, tendo ensinado em Roma a Summa Theologica de São Tomás de Aquino, entre 1580 e 1585, conheceria a obra que apresentamos e a sua natureza herética. E é patente que é um pensamento com tal perfil que ele refuta quando censura quantos «entendem que o poder secular e o direito civil visam directa e primariamente a estabilidade política e a sua conservação, e que, em ordem a esse fim se dão as leis, quer se encontre nelas uma verdadeira honestidade, ou somente uma estabilidade fingida e apenas aparente, incluindo a dissimulação do que é injusto, se tal se revelar útil ao Estado temporal» [ibidem, 12].
Mas naturalmente, estando O Príncipe entre os livros de leitura proibida, seguramente que mais do que enfrentar haveria que ultrapassar, centrando em outras coordenadas o cerne do discurso sobre a legitimação do poder.
Não foi só no pensamento de origem religiosa que o ideário de Maquiavel encontrou, porém, poderosos oponentes.
Expressão típica do pensamento anti-maquiavelista é a de Duarte Ribeiro Macedo [1618-1680][8], um juiz que se tornou diplomata e que serviu em França e Espanha. Um homem que, no dizer do 1º Marquês de Fronteira, foi um «finíssimo e manhosíssimo servidor de sua Pátria», seguramente se interessaria pelo pensamento do Secretário, seu colega de profissão e como ele estudioso das coisas políticas.
Mas se por um lado Macedo toma as suas distâncias em relação a Maquiavel – e fá-lo citando-o expressamente – a verdade é que a temática que aborda, os termos em que o faz – esse «fenomenismo barroco»[9] - e o próprio modo de articular as questões, demonstram que estamos ante um mundo moderno, bem mais aberto em concepção do que o encontrávamos sob as coordenadas jesuíticas: trata-se agora, nesta análise não confessional, de abordar temas tão maquiavelistas como da «razão de Estado»[10] e os vectores da «fama», da «opinião alheia», da «aparência», da «destreza», da «perspicácia e da prudência», da «ocasião» e da «temporalidade» que para ela contribuem, trata-se, enfim, de «bons costumes, boas leis e boas armas», tudo o que faça um príncipe «penetrar a natureza dos seus vassalos» e «mudar o estilo da natureza universal». Maquiavel havia triunfado ao marcar a agenda tópica dos seus críticos.
Eis a recepção que Maquiavel teve neste tempo e neste país, uma frontal oposição, em alguns casos, uma rude, feroz e homicida oposição.
Em 1626 Pedro Barbosa Homem, licenciado em cânones pela Universidade de Coimbra e juiz de fora da Covilhã, corregedor de Tavira, desembargador da Relação Eclesiástica da Guarda e da Relação do Porto, publica os seus Discursos de la jurídica y verdadera razon de estado[11], escritos em castelhano para que, no dizer do seu autor, a obra tivesse maior divulgação no estrangeiro. Barbosa Homem é, aliás, um defensor da união de Portugal a Castela.
A obra compõe-se de três partes. A primeira trata da razão de Estado, a espiritual e a temporal. A segunda trata da vida e obra de D. João II, o exemplar «Príncipe Perfeito». É na terceira que, abordando a política, estuda os «estados ímpios de Machavelo y Bodino».
A sua repugnância ante o pensamento de Maquiavel é total, a linguagem mostra-o. Veja-se este excerto exemplar: «Y seria yo sempre de voto que en semejantes puntos dexados deltodo las argumentos, el negocio se tomasse luego, com las personas de los argumentantes, prevenindoles tan a tiempo; que si el primer vomito de sus heregias fuesse desde alguna cátedra o libro: el segundo, nunca ya mas pudiera ser sino de en médio de hoguera» [discurso XII].
Para juiz, recomendava-se mais humanidade e serenidade.
Em suma, eis como um homem e sua obra sofreram a inimizade dos seus antagonistas. Mas não fomos só nós a dispensar-lhe a pior recepção.
Em 1576 o francês Innocent Gentilet sugeria, numa virulenta crítica a O Príncipe, que ele haveria inspirado Caterina de ‘ Medici – enfim!, uma de ‘Medici rendida ao Secretário – a perpetrar o nefando crime da sanguinolenta noite de São Batolomeu, de 24 de Agosto de 1572, com o extermínio do Huguenotes. E, como se isso não bastasse, Maquiavel foi apresentado como o protótipo do italiano «malvado, irreligioso e fraudulento». A guerra entre a França e a Itália continuava entre Gentilet e Maquiavel, apesar de este estar já morto…
Francês também, Jean Bodin [1529 ou 1530-1596] prosseguiu o mesmo combate[12] nos seus livros escritos em 1566 e 1576, essencialmente nos seus Six livres de la République, mas com uma diferença: é que o seu espírito jurídico e a ausência de lógica de sistema haveriam de reduzir a lógica do poder ao conceito de soberania [souvraineté], privilégio do dono da força, do que, numa lógica de Administração, «pode obrigar todos os súbditos e não se pode obrigar a si próprio».
Curiosa seria a atitude de Erasmo de Roterdão que, seduzido a princípio pelo pensamento de Maquiavel, acabaria por se incompatibilizar com ele. Este humanista cristão, que travou duro combate contra o fanatismo do clero e a corrupção da religiosidade – como o seu Morías Enkomion, o Elogio da Loucura, escrito em 1511, o demonstra – postulava, sobretudo na obra Institutio princeps christiani [1516] a noção de um príncipe sábio, que saiba que dominium, imperium, regnum, maaiestas, e potentia são tudo vocábulos pagãos, pelo que, animado pelas virtudes cristãs, ele deve exercer a beneficência, a clemência, a custódia, ser em suma um exemplo superior de vida». E, sobretudo, ele que é a viva lex, que edite poucas leis, para que haja poucos juristas, poucos advogados, mais Justiça!
O toque a rebate haveria de propagar os seus efeitos. Um pouco por todo o lado surgiriam os cruzados contra Maquiavel: Frederico II, da Prússia, «O Grande», em texto revisto por Voltaire, publicaria entre 1738-1740 um Anti-Maquiavel[13]; Tomaso Campanella, da Ordem dos Pregadores, o autor da utópica Civitas Solis, que acabaria, ao findar o século dezasseis, por cair nas mãos da Inquisição, enfrentaria também o pensamento do Secretário.
E, no entanto, a obra resiste, mesmo contra aqueles que quiseram para o seu autor a fogueira, para o seu livro o esquecimento. Como escreveu um contemporâneo de Maquiavel, Thomas Moore, na sua Utopia [1516] é a Natureza quem «verdadeiramente te adverte para que não procures o teu conforto com o desconforto dos outros». Malquisto, o livro sobreviveu ao ódio, porque o seu autor deu corpo a um princípio de imitação, segundo o qual o mundo é imutável na sua verdadeiramente essência porque cíclico. Nisso a essência do seu pensamento confundiu-se com o de um dos seus críticos, Francesco Guicciardini, quando escreveu que «as coisas passadas fazem luz às futuras, porque o mundo foi sempre de uma mesmíssima espécie e tudo o que é e será o foi noutro tempo e as mesmíssimas coisas voltam, mas sob outros nomes e cores».

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[1] Carlos Soveral, que prefaciou uma edição portuguesa de 1955 [proémio, página 10], notou-o até pelo estilo, que denota, pela transparência e vulgaridade verbal, um passo muito adiantado do pensamento: «Maquiavel não tirou do fundo de si mesmo o que exprime com a flexibilidade de quem bebeu o leite e respirou continuadamente na atmosfera comum».
[2] Ioannis Iovianus Pontanus [Giovanni Gioavano Pontano, 1429 (ou 1426, conforme as fontes)-1503], contemporâneo de Maquiavel, como ele diplomata e interessado na coisa pública, humanista polivalente e de obra multiforme, escrevera em 1493 um De Principe. Foi membro da Academia Pontaniana, fundada por Antonio Beccaddelli, o Panormita, a qual tem hoje o seu site na Internet recheado de dados históricos interessantes. Em 1993 Guido Cappelli escreveu uma edição crítica deste livro, publicado pelas Edizioni Scientifiche Italiane.
[3] Apesar disso, em 1529, Francesco Guicciardini redigiu um comentário crítico ao pensamento de Maquiavel, em que essencialmente põe em crise as seguintes facetas: a possibilidade de se retomar o modelo político romano clássico; o facto de Maquiavel manifestar uma ostensiva preferência por formas de governo “popular” em detrimento da oligarquia – imaginar como a crítica se inverteu com o tempo – e o carácter demasiado afirmativo do seu estilo conclusivo.
[4] Trata-se, como expressou Pedro Calafate [História do Pensamento Filosófico Português, II, 15], por um lado do «embate entre o catolicismo romano e o desejo luterano de uma profunda reforma da vida religiosa e, por outro, do confronto entre duas concepções filosófico-políticas: entre o príncipe cristão e o príncipe de Maquiavel, entre o fundamento ético da política e o desejo de constituição de uma “arte” política baseada na utilidade e manipulada da distância entre “o que é” e “o que deve ser”».
[5] O livro, traduzido e anotado por A. Guimarães Pinto, que redigiu uma introdução erudita à obra está publicado desde 2002 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
[6] Se é que não terão razão os críticos que sustentam que Osório nunca leu Maquiavel. Martim de Albuquerque aflora a questão [página 55].
[7] O nome do livro é sintomático: Tratado de la religión y virtudes que debe tener el príncipe cristiano para governar y conservar sus Estados. Contra lo que Nicolás Machiavelo y los políticos de este tiempo enseñan (Madrid, 1595).
[8] Sobre o seu pensamento e obra veja-se, apara além da referência que lhe faz Pedro Calafate na História do Pensamento Filosófico Português, II, 695-697, Ana Maria Homem Leal de Faria, Duarte Ribeiro de Macedo. Um Diplomata Moderno (1618-1680), Biblioteca Diplomática do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 2005. Os seus textos políticos só foram publicados postumamente, em 1729, sob o título Discursos Políticos e Obras Métricas.
[9] Expressão de Calafate.
[10] Coube ao jesuíta Giovanni Botero [1544-1617] a consagração oficial do termo ao ter escrito em 1589 os dez livros sobre Della ragioni di Stati. Trata-se de um ataque às ideias tidas por ímpias e anti-cristãs de Maquiavel, em favor de um príncipe «religiosíssimo e fiel à Igreja Católica», a doutrina da conservação pela prudência, porque, segundo ele, há mais virtude em conservar o poder do que em conquistá-lo.
[11] Há um exemplar na Biblioteca da Universidade de Coimbra [R 34-14]. P. Mesnard escreveu para o livro Christianesismo e Ragione di Stato, Milão, 1953 o artigo Barbosa Homem et la conception baroque de la raison d’État.
[12] Autor de várias obras de natureza filosófica e de teoria política, este docente de Direito da Universidade de Toulouse haveria de escrever também um La démonomanie dês sorciers [1580], obra pensada para o combate à feitiçaria, típica naquela época em que Inquisição prosseguia os seus autos de fé contra a heresia e contra a demonologia.
[13] Editado entre nós pela Guimarães, com tradução do francês por Carlos Soveral. Frederico foi acusado de estar a criticar os métodos que usou. Expressa neste escrito de juventude, um tom de moralismo grandiloquente: «ouso tomar a defesa da humanidade contra um monstro que pretende destruí-la», escreve na Introdução à obra. Na apresentação do livro [que as recentes edições eliminaram] Soveral não o poupa: «Frederico, apesar de sua vocação militar, não aprende sequer as relações estreitas que existem entre a guerra e a cinegética, e que, desde a primeira, conferem à segunda uma enorme importância. Nisto, um junker não ilustrado teria de ver melhor e mais congruentemente, do que o filho do Rei Sargento, abeberado na Enciclopédia».

27.8.12

Mircea Eliade, um documentário

Viveu aqui perto, como o referi já neste blog. Soube-o ao ter lido o seu Diário Lusitano. Daí em diante a sua presença ficou como uma constante, como se ainda hoje os sinais da Igreja de Fátima repicassem para nós ambos. O filme devo-o ao António Quadros Ferro que o citou.

18.7.12

A Pesca à Linha

Não é tecnicamente um filósofo, mas é essencialmente um português. E a filosofia portuguesa é um modo português de pensar. Que nasce pela nostalgia do lugar, prossegue pela intranquilidade viandante e culmina pela dúvida quanto à essência de si. 
Eis aqui a saudade perpétua do rincão natal, ela a Nação argonauta que transpõe o oceano e a toda a enseada chama Pátria, errante pela aurora de uma sacralidade sem religião, devotada fé no entardecer da vida.
António Alçada Baptista é isso. Imperfeitamente católico porque angustiado de Deus, ansioso da perfeição na condição terrena do homem carnal. Leio-o, regressado a casa: «Eu sou da burguesia da província onde nasci em pleno reino do ter. Agora estamos no reino do fazer, mas tenho uma certa esperança de que um dia se alcance o reino do ser.»
E sinto-o, revisitando-me, como se a um familiar ignoto que me fosse dado a conhecer