Não a publicarei integralmente, a apresentação que redigi para a edição de O Príncipe que a Editorial Presença publicou. Deixo aqui ficar o final, que se junta aos cinco excertos que aqui divulguei [e que podem ler-se aqui].
Escrevi tudo em 2008. O trabalho coroou um esforço de empenhamento no estudo da obra integral do "Secretário", incluindo os textos políticos, a poética, o teatro, a correspondência. Polémico, por trazer uma outra visão do biografado que não a odiosa comum, foi trabalho praticamente inútil: nem uma crítica, reparo, reprovação, sim, o desprezo do silêncio. Oficialmente este escrito nunca existiu.
[...] Está feita a apresentação da obra. Que
me perdoem os especialistas a ousadia de pensar que este meu acto de
atrevimento é uma tentativa de libertar o Florentino do cárcere a que o
condenaram todos os que dele fazem instrumento de confirmação ou de infirmação
das suas ideias apriorísticas.
Causa de facto viva impressão que um
mesmo homem, sobretudo por causa de um mesmo livro, mereça qualificativos tão
díspares entre si como se de um Anjo ou de um Demónio se falasse.
Maquiavel ainda hoje causa paixões.
São os que o reduzem ao que escreveu
neste livro, contra os que exigem que se leia tudo o que há dele. Junto-me a
estes, pois urge ler o Maquiavel republicano para que se entenda este tratadetto, rir com o Maquiavel obsceno
de La Mandragola para compreender o
poético autor dos sonetos de delicado enamoramento, descobrir o todo para
entender a parte.
São os que vêem nesta obra um manual de
instruções para tiranos, contra os que nela vêm um manual de sobrevivência para
que os tiranizados sobrevivam à tirania. Não me juntei a nenhum deles, pois
acho que O Príncipe foi apenas uma
tentativa de mostrar aos que eram aquilo que tinham de ser, para continuarem a
sê-lo.
São os que encontram aqui doutrina e
ciência no campo da política contra os que só acham pragmatismo e oportunismo
no mundo do governo. Percebi que Maquiavel escreveu este texto misturando um
interesse a muita observação e rematou com uma proclamação; uma obra destas
corre o risco de ir do zero ao infinito das categorias dos que vivem a dissecar
pensadores à falta de pensarem sobre o que eles pensaram.
Niccolò Machiavelli é, sobretudo, mais
diverso do que aqueles que, com estupidez militante, o reduzem ao homem
unidimensional.
Primeiro, ele teve o condão de, através
de toda a sua obra, desmascarar a política. Um jornalista brasileiro, ao
escrever sobre a edição de um dos seus livros disse, com humor, que Maquiavel
promoveu um verdadeiro strip-tease do
modo de pensar na política, começando por tirar as luvas.
Segundo, ele teve a lucidez de mostrar
como é que os políticos tiranizam também pelo marketing da sedução, essa violência doce sobre as inteligências. O
nosso Padre António Vieira, que está livre do pecado de ser maquiavelista e tem
a virtude de ter pensamentos que se aparentam aos do Florentino, escreveu: «na
perda de uma batalha arrisca-se um exército, na perda da opinião arrisca-se um
reino»[1].
Terceiro, ele deixou a cada um a sua
moralidade, para que, mostrando a eficácia do mal, pudesse ter a nobreza de
escolher o caminho dificultoso do bem. Tal como Vieira, a propósito de Dom João
IV, ele poderia ter afirmado que um tal Rei «sabia reinar porque sabia
dissimular; e reinou porque não dissimulou»[2].
Por fim, ele convocou, no final de O Príncipe, um chefe que desse à Nação
dos italianos a sua unidade, à Pátria a sua mítica, ao Povo a sua vontade de
viver, que conduzisse a Itália à República, através de uma política que não
invocaria o Santo Nome de Deus em vão.
Maquiavel ousou enfrentar os que,
reclamando-se a voz de Deus na terra, insultando com o seu comportamento
pecaminoso os fundamentos do cristianismo, entendiam que era na moral cristã,
que eles ofendiam diariamente, que se deveria encontrar o fundamento da
legitimidade da política: o cristianismo era, para ele, um obstáculo, por ser
uma moral decadente. Olhando em volta, vendo quem eram os Papas e como se
comportavam – Roma veduta, fede perduta
– entende-se bem porquê. Mas a Cúria romana não lho perdoaria, porque
consenti-lo era abrir a porta ao cisma da Reforma.
Em 13 de Outubro de 1517 o monge
Martinho Lutero afixou na Igreja de Wittenberg as suas 95 teses sobre a questão
das indulgências, o modo como a Cúria romana encontrara de se financiar –
nomeadamente para a construção da Basílica de São Pedro e pagar aos banqueiros
Függer – através da remissão a dinheiro dos pecados inclusive dos mortos. Tal
proclamação ateou como um rastilho. Denunciado embora pelos dominicanos como
herético e excomungado pelo Papa Leão X, Lutero assistiria à disseminação das
suas ideias, que traduziam a doutrina Protestante: o livre exame, o sacerdócio
universal dos crentes, a simplicidade ritual do culto, a negação do
livre-arbítrio, em nome de uma concepção pessimista sobre a natureza humana.
Niccolò Macchiavelli foi e é a
totalidade que se pode conter na excelência de uma pessoa, a equação dos
defeitos e das virtudes: conselheiro da crueza da guerra, diplomata ao serviço
da paz, há na sua figuração conhecida um sorriso estranho[3], enigmático como o da
Gioconda, a Mona Lisa, por antonomásia a mulher da Renascença, em torno da qual
ainda hoje alinham hordas de curiosos, um sorriso de quem, através da ironia,
se ri do mundo e do sofrimento que a vida consegue causar na sua perpétua
renovação.
Quis trazer-vos um Homem e não um
monstro, quis mostrar que há em Roma quem beatifica Savonarola depois de ter
excomungado, enforcado e queimado Savonarola e hoje disfarça o crime condenando
Maquiavel.
Quis – nestes tempos em que se desespera
quanto à possibilidade de redenção da sociedade através do Estado – deter-me
sobre este exemplo de realismo pessimista quanto ao Homem e de individualismo
heróico em prol do ressurgimento da Pátria.
E porque de um Homem se trata, termino,
com um Niccolò Machiavelli que na sua correspondência tem a fraqueza de
confessar a sua fragilidade amorosa, mesmo o perder-se na luxúria sensual.
Disse-o numa carta a Francesco Vettori, a 4 de Fevereiro de 1513:
«E porque vos
assustais com o meu exemplo, lembrando o que me fizeram as setas do Amor, sou obrigado a dizer-vos como me governei
com ele. Com efeito, deixei-o agir e
segui-o por vales, bosques, penhascos e campos, e achei que me fez mais mimos
do que se o tivesse maltratado. Por isso, tirai-lhe a albarda, tirai-lhe o
freio, fechai os olhos e dizei: vai, Amor, guia-me, conduz-me; se for para meu
bem, será para teu louvor; se for para meu mal, será para tua desonra: eu sou
teu servo.»[4].
É o mundo de Dioniso, um Maquiavel em
reiterado enamoramento, gozando a «alegria silenciosa» do amor, em arroubos
líricos como quando, no seu Albergaccio, alternando a rude existência e a
escrita deste livro, se apaixona por uma vizinha «una creatura tanto gentile,
tanto delicata, tanto nobile e per natura e per accidente, che io non potrei
laudarla né tanto amarla che la non meritasse piu»; ou, perdido o tino,
liquefeito em vulgares obscenidades que na nossa literatura se chamariam
vicentinas, escreve boçalidades de gargalhada plebeia, libertador diurético
talvez das retenções da conveniência social.
Faltava-me isso para lhe compreender o
enigma, sensual entre amorais pregando moralidades, virtuoso mestre na arte de
defender a virtù, contraditório entre
a dor e o riso, ambiguamente verdadeiro, enfim, humano, e porque profundamente
apaixonado, demasiado humano. A sua vida resume-se numa frase do capítulo XVII
deste livro: «quem não ganhar amor que evite o ódio». Ele perseguiu o Amor
ideal, entre a cidade dos homens e o afago dos amores venais.
Conseguiu-o através da ironia do
sorriso, rindo-se de si e de nós desdenhoso: contemporizou com a tirania que o
perseguiu, foi desprezado pela nova República que quis servir. Incerto entre os
homens, perdido entre as mulheres, morreu do menos poético modo, falhando-lhe
os intestinos. Deixou aos filhos os restos da pobreza.
Um dos seus textos poéticos chama-se O Capítulo. Dividiu-o em partes,
escreveu-o ao longo dos anos. Cada um desses tercetos tem um nome que é um
tratado de filosofia condensado numa só frase: fortuna, ingratidão, ambição,
ocasião. Cada ser humano revê-se ali, como a um espelho.
Ao contrário do que pensam os
académicos, as grandes obras são mais o produto do sentimento do que do
pensamento, a vida a escoar-se, «nervos, vida e História» em cada página.
Eis o Maquiavel que encontrei. Podia ser
qualquer de nós. Em cada um dos homens contem-se a totalidade da Humanidade.
[2] A frase
completa é um convite à leitura do Sermão
Histórico e Panegírico dos anos da Rainha Dona Maria Francisca Isabel de Sabóia,
de que faz parte: «Sabia reinar, porque sabia dissimular; e reinou, porque não
dissimulou. Prezava-se só da justiça, afectava o nome de justiceiro, e era
justo. Para os criminosos severo, para os pleiteantes igual, para os ministros
senhor, para os vassalos pai, e para todos rei.»
[3] Viroli,
na obra citada, constrói todo o seu registo em torno deste sorriso, «un sorriso
di sfida, che muore sulle labbra senza avere il calore di attenuare la pena che
serra il cuore» [página 131]
[4] Encontrei a carta traduzida no prefácio de Manuel
Mendes à edição de 1945 de O Príncipe.
Consultei a versão original, que cito. Registo aqui o modo como foi traduzida
por Mendes: «Dizeis que estais assombrado de saber o que as flechas de Cupido
me fizeram. Talvez vos deva explicar exactamente a minha política para com ele.
Em suma, eu deixo-o livremente agir como entenda, sigo-o com docilidade por
vales e montes, florestas e campos, e certifico-me, no final de contas, que ele
me tratou muito melhor, do que teria feito se eu lhe tivesse resistido ou lutado
com ele. Ainda o melhor é aliviá-lo de sela, de freio e de rédeas, fechar os
olhos e dizer-lhe: “Vai, Amor, sê meu guia, conduz-me – o bem será a tua
glória, o mal para o teu descrédito! Não passo de teu escravo”(…)».