Lembrei-me hoje dele e de como é dos muitos absolutamente esquecidos. Um dos mais inteligentes e brilhantes da sua geração. Civicamente corajoso. Expulso do Liceu aos catorze anos, por apoiar a independência do então Estado Português da Índia.
Militante comunista e como tal quadro intelectual com funções directivas na Seara Nova e redactoriais em O Tempo e o Modo, seria o continuador de António Sérgio no que ao racionalismo deste respeita.
Exemplo ímpar de uma visão ética da política - conheci-o através de outra referência da mesma natureza, Francisco Salgado Zenha - havia sob sua aparência fragilidade física um espírito combativo e tenaz, capaz de enfrentar as maiores adversidades.
A sua ruptura com o marxismo não o trouxe apenas no campo político para a teorização do socialismo democrático como uma vertente avançada da social-democracia. Criou-lhe a ânsia de um pensamento que o libertasse dos dogmas ideológicos do leninismo.
Não foi fácil. Se coexistiu com a radicalização política do seu tempo e combateu a ortodoxia ideológica do Partido que lhe dera o ser na política, foi sempre pela estreita vereda da rectificação auto-crítica do seu próprio pensamento. Havia nele - no que a fisionomia ajudava - algo que lembrava Gramsci. Até a angústia existencial latente na expressão que o sorriso trocista mal disfarçava, descobriando-a.
Ligado à vida universitária progrediu, inovador, por territórios de formalismo lógico que decorriam da Escola de Viena. A consciência do tempo histórico acabaria, porém, por ocupar, tal como se no horror ao vazio, o núcleo final do seu pensamento.
Se lhe coube o papel contestado de, na política, desmarxizar o socialismos português, entre incompreensões a rondar o ódio, talvez tenha sido a justa medida do relativo da verdade e da consequente abertura à tolerância, contra o dogmatismo, que marcam a sua pedagogia. Quis traduzi-la para o País em obra, como ministro da Educação. Sem futuro, porém.
Doutorado em Ética, de uma ética «neo-utilitarista», como dela diria António Braz Teixeira, ensaiaria, na docência e na incerta escrita, uma coerência do turbilhão mental a que o seu espírito superior o conduzira.
Falo de Mário Sottomayor Cardia.
Lembrei-me dele hoje e com ele dos tempos em que a inteligência e a moral dos dirigentes eram dois dos pilares da política, o terceiro a sua dedicação sacrificial à causa pública.
Sim, sei, dá hoje nome a uma biblioteca na Universidade Nova de Lisboa. Talvez a uma rua. Não a um exemplo que se tenha enraizado.