4.5.12

O aniversário de Maquiavel

Nasceu no dia de ontem. Em 1496. Não me foi possível vir aqui comemorá-lo. Faço-o hoje, publicando um primeiro excerto de um texto que escrevi em 2008 para que servisse de apresentação ao livro O Príncipe por causa do qual o seu nome foi amaldiçoado. A Editorial Presença editou-o, traduzido directamente do italiano.
Esse meu estudo, como já disse aqui, foi praticamente ignorado. Talvez por ser contra a corrente. Nunca ninguém se atravessou a apontar-lhe defeitos ou erros. O silêncio foi o método e a punição. Escrevi-o porque me impressionou que este homem tenha reduzido a uma caricatura grotesca do que realmente foi. Que este seu livro tenha sido diabolizado quando nunca o publicou em vida e ele tenha sido reduzido a esta obra. Que os ferozes críticos que conheceu e conhece tenham tido toda a liberdade de expressão e, no entanto, a obra tão pertinazmente criticada tenha entrado no Index dos livros proibidos pela Igreja Católica. Eis, em homenagem, com a devida vénia ao editor:


«Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel»

Villari




Encerro este texto de apresentação na véspera de terminarem os cinquenta e oito anos da minha vida, a idade com que morreu Niccolò Machiavelli. E encerro-o lembrando um pensamento seu: numa cidade corrupta as repúblicas não podem manter-se nem recriar-se. Por isso, ele terá escrito O Príncipe. Por causa disso a História amaldiçoou-o, condenando-lhe o nome, como se através da desconsideração pública lhe ferisse o coração da honra. Vejamos como.
Este exercício, porque trivial, é para isso, um começo necessário. Consulte-se um dicionário da língua portuguesa, uma enciclopédia, para maior alcance: Maquiavel deu origem, pelo menos no nosso léxico, ao substantivo maquiavelismo e ao adjectivo maquiavélico. É uma escalada que, começando com um nome de pessoa, termina num qualificativo de sentido pejorativo. Veja-se, por exemplo, a Enciclopédia Luso-Brasileira: «maquiavelice: acção ou dito maquiavélico; astúcia, ronha, manha, ardil»; «maquiavelismo: sistema político que assenta na astúcia, na perfídia e que foi exposto por Maquiavel» [1].
Só a um homem de excepção sucede um tal azar. A causa disso foi um livro que ele nunca chegou a publicar, editado em 1532, sete anos após a sua morte, precisamente este livro escrito por quem sofreu a «malignidade da Fortuna», como ele descreveu a fatalidade do seu percurso.
Esta apresentação é a narrativa de uma tragédia existencial, O Príncipe visto como um produto de amargura, de grandeza agónica, de desespero mas, também, nas sucessivas interpretações que concitou, um espelho das doridas contradições sociais, políticas e religiosas dos vários séculos de História durante os quais a obra sobreviveu até chegar, como um clássico, aos nossos dias. Tudo convergiu para que o acaso não pudesse gerar diferente destino. A verdade do escrito é a do efeito que produziu.
Descobri que para ler este pequeno livro e entender a complexidade que se esconde por detrás da sua vulgar linguagem importaria conhecer o seu autor, retirá-lo do imaginário colectivo, que ora o transformou numa espécie de cortesão alcoviteiro de tiranos, com eles partilhando os arminhos do poder, ora em republicano desprezado pela República, amigo do povo e dele seu discreto defensor, e ir buscá-lo ao momento de exílio, «res perdita», sofrido o desemprego, sujeito à prisão e à tortura, o dia gasto em convívio com gente boçal, a noite esgotada em fantasias delirantes em companhia dos Antigos, a dura modéstia do quotidiano e a ânsia de obter «qualche cose» dos de ‘Medici ou do Papa, um de ‘Medici também [2], algo que lhe devolvesse o sentido de utilidade e algum rendimento, como nos tempos idos em que era o Secretário da Segunda Chancelaria da cidade de Florença.
Filho de advogado literato e por isso pobre, Nicolau Maquiavel, cultor das letras, pobre morreu também. Legou-nos, inédita, uma obra que é um sonho fantasioso de grandeza, tal como o estranho sonho que terá tido, segundo consta, antes de morrer [3].
Mas não basta conhecer o homem e a sua circunstância, importa também ter a percepção dos variados contextos pelos quais a obra passou ao longo do tempo e as mais antagónicas leituras que proporcionou, sempre sem esquecer em que estado se encontrava a península itálica onde foi escrita e encontrada a crueza do poder e a malícia interesseira generalizada, afinal o cenário desta encenação, «O Grande Teatro do Mundo».
Estamos no reino da complexidade. Sente-se isso vendo, por exemplo, o modo como a Cúria romana recebeu a obra, com a naturalidade, primeiro, de quem observa coisa sua, para depois a condenar ao catálogo dos livros proibidos.
O livro foi aceite primeiro com indiferente contemporização por um Papado corrompido e em promíscua relação com o poder temporal, destinatário natural de muitos destes pensamentos; no capítulo XI, dedicado aos principados eclesiásticos [4], o Papa Leão X vê o seu pontificado retratado como «potentíssimo» e Maquiavel a augurar que, erigido «com armas» pelos seus «santíssimos» antecessores, seja agora «grandíssimo e venerando» através da sua «bondade e infinitas outras virtudes». Não poderia haver maior lisonja.
Pouco mais de quarenta anos volvidos, em 1559, por decreto do Papa Paulo IV [nascido Gian Pietro Caraffa] [5], O Príncipe entrava, porém, na lista dos livros amaldiçoados pela doutrina católica e, a partir daí, ler Maquiavel passou a significar estar em pecado de heresia, o autor queimado em efígie, os teólogos a clamarem pela fogueira como argumento final contra o seu pensar.
Mas foi no campo da política que a obra sofreu as mais diversas interpretações e serviu para legitimar as mais distintas ideologias: caucionou tiranias e foi tida como expoente de democracia, apontada como exemplo de realismo político e como manifesto de resistência amarga de uma vítima do poder. O marxista Antonio Gramsci [1891-1937] [6] leu apreciativamente o livro na frieza do cárcere, o fascista Benito Amilcare Andrea Mussolini [1883-1945] citou-o [7], como exemplo, nos seus histriónicos discursos. O Príncipe é, pois, uma excelente demonstração de que cada coisa contém em si própria o seu contrário.
Livro herético, ele moveu, logo desde o século dezasseis, uma cruzada anti-maquiavelista, que levantou pendão nos campos de batalha do pensamento filosófico, histórico, político e ético, mobilizando forças para o enfrentar, como se contra o próprio Demónio se travasse esse combate.
Curiosamente, parte substancial dessa peleja passou por Portugal como uma decorrência do mandato ingente da propagação do Império através da Fé.
«Espanha e Portugal colocam-se desde a primeira hora em oposição política a O Príncipe», escreveu, em 1939, Vergílio Taborda, professor da Faculdade de Letras de Coimbra [8], quatro anos depois de ter surgido, pela mesma editora, a primeira versão do livro em língua portuguesa. E porquê? Porque, escreve Taborda, «defendendo a cidadela da fé em todos os campos, a Península não deixaria de fazê-lo também no da política. O maquiavelismo era a expressão máxima da política nova, realista e pagã: combatendo-a, as nações peninsulares não se afastavam do caminho que se haviam proposto percorrer».
Eis, encontrada no espírito do seu tempo, a bandeira intemporal de um exército que ainda hoje se não desbaratou e cuja linha da frente é encabeçada pela defesa da moral religiosa enquanto conceito ético do poder justo, contra a «visão pessimista da realidade humana», contra a «política de força», a «política de dissimulação e de perfídia».
No ano passado, Martim de Albuquerque, um historiador de pensamento filosófico conservador e de inspiração religiosa [9], dedicado à História das Ideias Políticas [10], publicou um livro [11] em que defende a tese segundo a qual o pensamento «maquiavélico» - eis como o trata – é incompatível com o que chama «a ética tradicional portuguesa», a mesma que, segundo ele, criou a figura do «fidalgo», seu antagonista e da sua moral prática.
O livro amplia um outro, escrito em 1973 e publicado em 1974, pelo Instituto Histórico Infante Dom Henrique, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa [12], que se inspirara num trabalho sobre o mesmo tema e – curiosamente – com o mesmo título, escrito por Mário de Albuquerque [13], em 1954.
Trata-se de uma obra de fôlego, profundamente documentada, que permite ao autor concluir que «o pensamento tradicional português é antimaquiavélico» e que o maquiavelismo «é incompatível com a necessidade da expansão e com a psicologia de um povo sonhador de quinto-impérios e criador do tipo ideal do fidalgo».
O Príncipe é, pois, um pequeno livro que ainda hoje suscita grandes paixões na delimitação da fronteira entre a virtude e o pecado no campo da política e da própria filosofia do comum viver.
Sucedeu assim porque o autor e a obra, uma vida e um livro, uma narrativa e uma doutrina, se confundiram numa mistura sincrética, pela qual se condenou à maldição eterna este opúsculo que, numa fórmula de Bertrand Russell, é «um livro para gangsters».
Mas não pense o leitor que tem em mãos páginas que apenas suscitaram censura e concitaram contra si detractores e maldizentes. Fazendo contemporânea recensão do muito que se escreveu sobre Maquiavel, Isaiah Berlin [14], um espírito lúcido e erudito, acumularia um tão vasto acervo de epítetos, tão pitorescos quanto entre si contraditórios, a propósito do Secretário, tudo a mostrar que, amado ou odiado, ele teve o condão de, secula seculorum, não deixar ninguém indiferente e muitos tomaram mesmo partido em seu favor. Benedetto Croce considera-o um homem de «uma austera e dolorosa consciência moral» [15], Ridolfi [16] acha-o «um cristão especial».
Ciente da impossibilidade de abarcar esta labiríntica literatura [17], em que já florescem estudos sobre os estudos maquiavelistas, coube-me, por gentileza do editor, o pesado encargo de escrever umas linhas de apresentação de O Príncipe. Ao fazê-lo, tive de convencer-me de duas coisas.
Primeira, que Niccolò Machiavelli não é coutada privativa de historiadores ou de «cientistas» políticos – que são a grande multidão que dele se ocupa – pois a multiplicidade do seu ser e o polimorfismo do seu pensamento tornam-no um espelho da própria vida. Há uma frase de Giovanni Papini que resume tudo: acusar Maquiavel «é acusar o próprio espelho», o mesmo é dizer, nele está a totalidade de todos nós e cada um em alguma particularidade do seu ser.
Segunda, que tendo sido dito tanto e, sobretudo, tanto contra Maquiavel, era tempo de lê-lo e ousar dizer, como se pela primeira vez: a cada um o seu Maquiavel, pois todo o Homem é livre de se rever no Maquiavel que haja em si e nos outros que o cercam, sendo a vida o combate com o demónio que possui o irrequietismo de cada criatura.
Devo ao acaso da leitura de um pequeno texto, de Henrique Barrilaro Ruas, ter-me sido possível levar os olhos um pouco mais alto do que a vulgaridade com que entendia a obra que agora apresento e ter sido capaz de compreender «a necessidade ou conveniência científica de distinguir e destacar o maquiavelista […] do maquiavélico» [18]. Foi por aí que comecei o meu estudo. Sem isso seria mais um que faria à obra a injustiça de tomar partido. Como Maquiavel põe na boca de Calímaco, na sua notável peça de teatro La Mandragola: «uma coisa gera outra e o tempo gera todas».
No momento em que escrevo sinto o conforto de saber que muito se evoluiu na percepção e na avaliação deste controverso autor e haver assim espaço para outras visões pessoais que não tenham de se inserir nas trincheiras onde se tem travado o combate ideológico em torno da interpretação e aplicação de O Príncipe.
O aprofundado conhecimento da integralidade da sua obra – não apenas dos escritos políticos, mas os do comediógrafo, do poeta, do simples escritor de cartas – a contextualização da mesma na época do Renascimento que a ditou – e tudo quanto tal significa de ruptura com a visão teocêntrica da vida e do Homem – a ponderação da situação política que lhe foi dado viver – a ânsia da unificação de uma Itália pulverizada, traumatizada por sonhos de glória passada – enfim, um levantamento biográfico exaustivo sobre a triste misantropia e a gaia ironia da sua conturbada vida, tudo isso permite uma nova visão, mais abrangente e, sobretudo, mais enriquecedora porque mais realista.
Há hoje, no fluir contínuo do pensamento e do sentir, que são a fonte da inteligibilidade de todas as coisas, ao lado de um revisionismo salvador do pior que se retirou de maquiavélico do maquiavelismo – parte do processo histórico de branqueamento dos horrores da História e da malignidade filosófica – um esforço bravo de libertar a filosofia da ideologia, o pensamento dos preconceitos, compreender sobretudo o que ditou a perenidade multi-secular deste pequeno livro.
Como disse, vibrante, Jorge de Sena, num estudo vindo a público em 1963 [19], do que se trata ao estudar Maquiavel é da condenação das «hipocrisias dos moralismos e dos legalismos» simultaneamente com o «amoralismo total», «as grandezas e misérias do poder político», em suma, a «baixeza moral» dos que traduziram em falta de dignidade o pensamento daquele que teve «a coragem de colocar a política no plano de uma filosofia de acção, independentemente dos ditames e da autoridade de qualquer poder constituído, religioso ou não».
Mas mais: é que há quem esqueça ou por sistema pareça não querer lembrar, que se Maquiavel não escreveu O Príncipe exactamente ao mesmo tempo [20] em que foi redigindo os seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio – obra dedicada ao estudo da República romana – parecendo inseguro que tenha interrompido um livro para continuar o outro [21], a verdade é que é o pai dos dois tomos, nos quais discorre respectivamente sobre principados e sobre repúblicas: claro que o anti-maquivelismo tosco só sobrevive pelo eclipse desta dualidade e pela crucificação de Niccolò Machiavelli à sua obra «politicamente incorrecta», como agora passou a ser moda dizer-se e, assim, quase obnubila os Discorsi para focar – como se do seu cérebro perverso só tivesse saído ruindade – O Príncipe.
Maquiavel entrou no panorama editorial português pela porta errada. Veremos isso adiante.
Logo no princípio tudo lhe correu mal. Livro proibido desde o final do século em que surgiu, antes de ser conhecida a sua obra foram conhecidas as dos seus críticos: a censura dá liberdade aos detractores, garantindo-lhes a impunidade de não permitir que outros aquilatem directamente o que eles vituperam. O anti-maquiavelismo teve, assim, o beneplácito do «imprimatur» que a Maquiavel foi negado.
Quando finalmente O Príncipe foi dado à estampa, traduzido por Francisco Morais e editado em Coimbra, pela Atlântida, em 1935, viria antecedido com um comprometedor «artigo de Mussolini a servir de introdução», precisamente Benito Mussolini, o Ducce da Itália fascista. Não haveria pior chaga a marcá-lo, para a posteridade, de gafa intelectual.
A obra seria recolhida das bibliografias oficiais e lançadas as hostes do pensamento de raiz católica no seu encalço. O estudo de Vergílio Taborda, difundido em 1939, com a 2ª Guerra Mundial no seu alvor e as sombras nazi-fascistas a ocuparem o seu espaço vital na cultura europeia, é disso concludente exemplo.
Mas não ficaria por aí a forte corrente contra as suas ideias.
Também no campus do jurídico se travaria estrénua pugna, que passou dos corredores das elites do pensamento para o combate de rua, ao nível mesmo das insignificantes publicações. Ainda em 1953, ao enfrentar o pensamento positivista que ameaçava agora fazer escola nas cátedras e na prática judiciária, apelando em seu socorro para o valor ético do Direito Natural, um modesto estudo, oferecido pelo autor aos alunos do Colégio de João de Deus, no Porto, ante os «dias sombrios que vivemos» lembrava que «Maquiavel fez aquilo que nos nossos dias estava reservado ao positivismo jurídico: interessou-se apenas pelo direito positivo, pelo direito observável e apreensível em certo momento e em determinado lugar, relegando para o campo da moral tudo o mais que existe no mundo normativo. Ignorou portanto o verdadeiro sentido ontológico do direito que visa a realização da Justiça». Escreveu-o Manuel José de Carvalho Martins de Almeida [22].
Envolto num ambiente de contenda, Maquiavel acabou por ficar atado ao pelourinho da infâmia, as suas ideias, tanto no linguajar popular como na conceitualização erudita, associadas a uma acepção pecaminosa, simbolizando a palavra maquiavélico a urdidura do enredo enganador, a vileza da traição aleivosa, a perfídia desapiedada, em suma, o principado da amoralidade, em resumo, o diabólico. Papini, que tem o condão de resumir grandes reflexões em pequenas frases, sintetizou: «Maquiavel ficou com fama de porco por causa de La Mandragola e de canalha por causa de O Príncipe».
E, no entanto, poder-se-á dizer, como escreveu Sena, que «ele foi, antes de mais, um patriota italiano e um estadista angustiado por ver a sua Itália dividida em principados, repúblicas, estados papais, e territórios de potências estrangeiras»? Poder-se-á dizer, acompanhando de novo Jorge de Sena, um engenheiro a quem a Literatura tanto deve, que «foi, e é, um dos maiores escritores da literatura italiana; e, se compreendida e situada no tempo dele, a sua obra é a de um dos mais argutos, lúcidos e corajosos pensadores políticos de todas as épocas»? Talvez, ou nem tanto.
Eis do que se trata: de amar, odiar ou compreender este livro. Lê-lo não basta. Ele pode ser um produto do riso irónico sobre os poderosos ou o fruto de uma raiva contida sobre as suas vítimas. Manual de política ou novela alegórica? Vejamos pois, começando pelo seu autor, aproximando-nos do momento em que o escreveu [... continua...].
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[1] A Enciclopédia consigna mesmo a forma verbal «maquiavelizar», ilustrando a ideia. Cita, como texto de apoio onde o verbo fizera a sua aparição, um texto de Fialho de Almeida [Vida Irónica, VI, 393] a propósito de uma «certa viscondessa, perversa, sedutora, cortesã, tolerada nos meios honestos» a qual «maquiaveliza as mais flamejantes cenas dos três actos». O Dicionário de Moraes regista o mesmo sentido.
[2] Duas notas interessantes. Primeira, para referir que o «de ‘», sempre minúsculo é a abreviatura de «dei», antes da consoante e do «degli», antes da Vogal para fazer referência à família de que se trate; segunda, que por falar em Papas, os de ‘Medici deram origem a três. O próprio Papa Pio IV pretendeu ser membro da família, sem o ser!
[3] Circula, entre a lenda e o possível, a narrativa do sonho blasfemo de Maquiavel que, no leito de morte teria, em onírica fantasia, visto um mundo em que a turba dos pobres e dos simples caminhava para o Céu, os filósofos antigos – Platão, Plutarco, Tácito – e outras «graves figuras» da cidadania condenadas ao Inferno, porque estava escrito: «Sapitentia huius saeculi inimica est Dei». Posta em dúvida a sua autenticidade, o sonho tem servido como instrumento de cristianização do «ímpio» Maquiavel», que ante o momento de prestar contas ante um Deus que, com a sua obra ofendera, blasfemando-o pelas conveniências da política, terminara a vida mandando os políticos, de que fora conselheiro, arder nas fogueiras infernais. Trata-se de um sonho análogo, embora de sinal diverso, ao sonho de Cipião, que Cícero relata no seu Tratado sobre as repúblicas: «para todos os que conservaram, ajudaram e engrandeceram a Pátria, está guardado no Céu um lugar especial».
[4] O modelo monárquico do Papado, com a transformação do chamado «património de São Pedro» num principado, tendo à cabeça um Sumo Pontífice foi levada a cabo a partir da segunda metade do século VX quando o Papa Eugénio IV se estabelece definitivamente em Roma, em 1443, vitorioso sobre quantos pretendiam a supremacia da autoridade dos Concílios sob os concílios. A queda de Constantinopla em 29 de Maio de 1453, às mãos do Turco Maomé II, veio a abrir a porta para a supremacia da Igreja Católica, Apostólica, Romana. Dotado de exército próprio, de cerca de dez mil homens, a que acresciam mercenários, o Estado Pontifício em pouco se distinguia das outras potências temporais.
[5] Paulo IV procedeu à reorganização do Tribunal do Santo Ofício, incumbido da polícia da fé e do combate às heresias, criando a Congregação da Sacra Romana e Universal Inquisição e lançou o Index dos Livros Proibidos, por decreto de 30 de Dezembro de 1558, publicado no ano seguinte. Nele todas as obras de Maquiavel, de Rabelais e de Erasmo de Roterdão eram referidas como de leitura vedada. Com o Concílio de Trento, em 1564, foi elaborado um segundo catálogo de livros proibidos [Index librorum prohibitorum a Summo Pontifice] e mantida a interdição sobre obra de Maquiavel.
[6] Antonio Gramsci, Note sul Machiavelli sulla Politica e sullo Stato Moderno, Torino : Editori Riuniti, 1971. A visão apreciativa de O Princípe havia sido considerada criminosa na União Soviética: Lev Kamenev [1883-1936] traduziu em 1934 o livro para russo, citando-o como um percurso das análises de Marx, Engels, Lénine e Stalin. Tal ousadia e outras afins custar-lhe-iam a vida, acusado em 22 de Agosto de 1936 por Andrei Vyshinsky, o Procurador soviético, quando do seu julgamento no quadro das grandes purgas estalinistas. «Que os cães enraivecidos sejam mortos a tiro!» pediu Vyshinsky, nas suas alegçaões finais! E foi.
[7] Benito Mussolini, Preludio al Machiavelli, revista Gerarchia [órgão oficial do movimento fascista italiano], Abril de 1924.
[8] Falecido com pouco mais de trinta anos, Vergílio Taborda escreveu, ainda como estudante, um estudo intitulado Maquiavel e Antimaquiavel, que a editora Atlântida editaria em 1939 e que mereceria uma nota prévia de Francisco Morais, Manuel Lopes d’Almeida e Paulo Quintela. Citando como seu mestre Gonçalves Cerejeira, Cardeal Patriarca desde 1929, e que é um dos mais lídimos pensadores da doutrina católica, Taborda regista que desde a segunda parte do século XVI e por todo o século XVII «os contraditores de Maquiavel são aqui legião, da rosa-dos-ventos do saber: teólogos, canonistas, filósofos, políticos, juristas, diplomatas, clérigos, laicos, nobres e plebeus».
[9] Recebera o prémio de Ciências Económicas da Revista da Faculdade de Direito, comemorativo do seu cinquentenário, por ter escrito um trabalho sobre A Doutrina Social da Igreja, editado em 1965.
[10] Em 1968 publicara, para além de um opúsculo sobre o erro em Direito Penal, o livro Para a História das Ideias Políticas em Portugal (Uma carta do Marquês de Pombal ao Governador do Maranhão em 1761).
[11] Martim de Albuquerque, Maquiavel e Portugal, Estudos de História das Ideias Políticas, Aleteia, 2007
[12] A Sombra de Maquiavel e a Ética Tradicional Portuguesa. Trata-se – no dizer de João Bettencourt da Câmara, no seu estudo que citaremos sobre a primeira edição portuguesa de O Príncipe – de uma «magistral investigação (e arqui-polémica tese)».
[13] Estudo publicado na revista Esmeraldo [2, páginas 9 e seguintes]. Joaquim Veríssimo Serrão, à data director do Instituto, revela, no seu «prefácio» à obra, que, sendo o autor filho do Professor Mário de Albuquerque, «mestre jubilado na Faculdade de Letras de Lisboa», o estudo em causa era «fundado num estudo de cintilante intuição de seu Pai». Na «Nota Prévia» desta sua tese Martim alude à identidade do tema e intencional homonímia do título, citando-o como ponto de partida da sua investigação; o labor hoje por si continuado e ampliado, mantém o mesmo ânimo militante.
[14] Martim de Albuquerque retoma-os ao falar no «número infinito de interpretações» que o pensamento de Maquiavel suscitou, comentando que se tornou «verdadeira selva a temática em volta de Maquiavel», menciona Berlin como fonte dessa recolha [nota de rodapé 19 à primeira parte]
[15] Benedetto Croce, Elementi di politica, Bari, 1925, 62.
[16] Roberto Ridolfi, Vita di Niccolò Machiavelli, Sansoni, Fizenze, 1978.
[17] Isaiah Berlin, num seu texto de 1979 sobre a originalidade de Maquiavel recuperado para a colectânea, editada pela Bizâncio em 1999 (sob a coordenação de João Carlos Espada) conta 3 000 estudos publicados até 1972.
[18] Cito o seu pequeno artigo sobre «maquiavelismo», publicado na «Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura» [volume 18, editado em 1999, página 1188]. Nele, Ruas resume o seu pensamento quanto à distinção [que julga deve ser feita também em relação a Karl Marx] entre o teorético e o doutrinário: «Maquiavel foi vítima de uma cilada que ele próprio montou». Já Veríssimo Serrão anotara, ao prefaciar a obra de Martim de Albuquerque: «Foi voga desde o século XVI citar Nicolau Maquiavel e abusar do seu nome e mensagem para explicar situações que nada têm de “maquiavelismo”. As correntes ideológicas levaram à deficiente aplicação desse conceito, criando uma perigosa vizinhança com interpretações que não promanam da fonte autêntica de Maquiavel».
[19] Sena escreveu sobre O Príncipe um estudo que publicou, tal como um outro sobre O Capital, de Karl Marx, para o volume colectivo intitulado Livros que abalaram o Mundo, publicado em 1963 pela editora Cultrix, de São Paulo. Em 1974 a Livraria Paisagem dá-lo-ia à estampa, num volume a que chamou «Maquiavel e outros estudos», que o próprio autor de «Sinais de Fogo» prefaciara em Maio de 1973, ainda em Santa Bárbara, na Califórnia.
[20] A questão da cronologia nas obras de Maquiavel é controversa e a da articulação destas duas obras ainda o é mais. A tese tradicional, segundo a qual a partir de 1513 Maquiavel se teria desdobrado na escrita de ambas, terminando os Discorsi em 1519, encontra hoje cada vez menor apoio, apesar de Gilbert, em 1953, ter sustentado que pudesse ter existido um tratado sobre as repúblicas, escrito por Maquiavel anteriormente à redacção de O Príncipe, pois no início do segundo capítulo desta obra refere que sobre as repúblicas não falará aqui pois que «altra volta ne ragionai a lungo» [já discorri demoradamente numa outra vez]. Mais recentemente, uma outra teoria tentou, acentuando o carácter incompleto e fragmentário dos Discorsi, demonstrar que a sua pré-existência relativamente a O Príncipe não exclui que Maquiavel, após a sua redacção não tivesse continuado a trabalhar naqueles, uma vez que não parece curial que a menção com que se inaugura o referido capítulo II fosse ao texto dos Discorsi tal como o conhecemos actualmente. Mais: as condições de penúria em que Maquiavel escreveu O Príncipe e o carácter instrumental da obra como tentativa de obter apoio dos de ‘Medici são pouco compatíveis com a ideia de que ele «se afadigasse, com ou sem Livio, um belo tratado sobre as repúblicas» [Dionisotti, obra citada infra, 255]
[21] Ugo Dotti, Machiavelli Rivoluzionario, Carocci, Roma, 2003, páginas 309 e seguintes enuncia as teses que se perfilam sobre a compatibilização cronológica entre as duas obras.
[22] Trata-se de um breve estudo intitulado Direito e Estado em Maquiavel. Inspirado no pensamento do professor Cabral de Moncada expresso numa oração de sapiência proferida na Faculdade de Direito de Coimbra em 1945.