20.4.09

O Dr. Pomadinha

Consegui um recanto de tempo para ler uma palestra que Pinharanda Gomes proferiu em 20 de Março de 2006 na Sociedade Histórica para a Independência de Portugal sobre o pensamento de Agostinho da Silva. Texto curto, juntam-se-lhe os de duas outras intervenções do ilustre natural de Quadrazais proferidas nesse mesmo ano sobre o filósofo «caminheiro, mendicante ou itinerante», como ele lhe chama com afectuoso humor. Editado pela Zéfiro.
«Em contra do signo sebastianista, Agostinho escolhia o signo henriquino, o espírito de acção contra a resignada paixão: da arca fez barca».
Aprende-se muito em pouco tempo. Às vezes são pormenores que fazem sorrir, suma lição num mundo tão façanhudo. Agostinho - qual Agostinho?, pergunta-se o palestrante - publicou um estudo chamado Elogio da Academia. Documentos Literários. Assinou-o «com três pseudónimos: Doutor Botocudo Júnior, João Cabrinha e Dr. José Pomadinha». Fantástico gozo, magnífico intervalo.

19.4.09

O acaso

Li isto: «Há qualquer coisa de absolutamente selvagem nas coincidências. Elas nunca são procuradas e, no entanto, aparecem-nos sem que estejamos à sua espera. São uma espécie de Pã, no meio do caminho, sobressaltando-nos o passo, agitando-nos a alma». É um texto de Cynthia Guimarães Taveira, publicado nos Cadernos de Filosofia Extravagante, aqui.
Esta manhã sucedeu isto: escrevi esta manhã um post sobre a Clarice Lispector. Minutos depois chega um alerta Google, de que alguém tinha escrito num blog que começara há bem pouco tempo um texto sobre a Clarice Lispector: aqui.
Há qualquer coisa de absolutamente selvagem nas coincidências! Efectivamente.

7.4.09

Quadros, Bruno, a identidade do eu

Não sei quando li António Quadros pela primeira vez, nem quando me atrevi a escrever sobre ele. Foi muito antes de a vida me ter marcado agora encontro consigo. Sei é que acabei de ler o que só há pouco tempo me ensinaram ser, afinal, o seu único romance: Uma Frescura de Asas, editado em 1990.
O livro, coitadinho dele, vem maltratado com gralhas, pois deve ter sido composto por um tipógrafo calino como eu e revisto por um catador pior ainda do que eu quando me armo em revisor.
É um «livro insólito», diz-se na contra-capa. É um livro simbólico diria eu.
Na aparência é uma biografia de José Pereira de Sampaio, que passou para a História como Sampaio Bruno, mas eu creio que é, em muito, uma biografia espiritual do próprio António Quadros.
Li-o em quatro fôlegos. A narrativa é a de um homem, João Pereira, que está no leito de um hospital onde acabará por morrer. Qual é o seu nome alcança-se em dois momentos. Que se chama João na página 20, que é João Pereira na página 89.
De que trata? De muitas coisas, todas as que têm valência nas entranhas de um homem em crise ante si próprio: de Deus e dos Anjos, dos homens e do demais.
A narrativa assume a forma de um diário, que vai entre 6 e 11 de Novembro de 1915. Foi na verdade nesse primeiro dia que o autor de O Brasil Mental foi operado pelos cirurgiões Júlio Frankini e Severiano José da Silva. Sofria, desde os poucos meses de idade de uma rotura na virilha direita, estado que se agravou, por descuido seu, quando sofreu de uma hidrocele, que o impedia de caminhar. Morreu pelas 19:00 do dia de São Martinho.
Descontado o muito que é semelhante na história, importaria descortinar o que marca a pouca diferença. Uma biografia de Quadros está por fazer. Penso que ele a iniciou biografando-se através desta biografia romanceada. «Eu não podia escrever a eu, porque o eu é o mesmo e não tem outro. Onde há unidade de substância não pode haver dupla consciência», deixou ele, como uma chave para o mistério desta sua estranha criação.
Um seu dedicado e tão esquecido nessa dedicação, Jesué Pinharanda Gomes, disse na Colóquio que ele escreveu sobre «todas as escalas do humano e do divino saberes»
Hoje nem Quadros nem Bruno existem. É pena que criaturas destas se vão. Sei que o fazem de um modo singular: «Fechei os olhos para não ver que me estavam a ver», escreveu o biógrafo romancista. É neste acto de timidez que se lhes resolve a agonia de morrerem.