19.11.06

Amadeu de Souza Cardoso

Sim, eu hoje notei-os, vagueando, perdidos, sem nexo como quem faz tempo, pelos jardins da Fundação Gulbenkian que são, pois que perto da minha casa, uma continuação botânica da minha vida sem história domingueira. Foi depois, pela hora de almoço, ao vê-la, velha amiga, os olhos verdes lindos, ansiosos de beleza, estonteada no passo incerto, Avenida de Berna abaixo à procura de um café logo hoje que é domingo, logo aqui que fecham quase todos, que compreendi tudo. As visitas guiadas à exposição do Amadeu de Souza Cardoso estavam num caos de desorganização.
Pobre Amadeu, que aos trinta e um anos se foi desta vida e a cujos quadros muita da negligência familiar se foi, desprezando-os.
Numa raivosa carta a sua mãe, escrita de Paris, perguntava-lhe: «A Mamann sabe o que é a burguezia? Sabe sim. É a geral sociedade, essa que vive animalmente, isto é, aquela em que os sentimentos animaes é tudo e os espirituais nada. É uma sociedade de alma animal, Ha tambem bons burguezes., porque a alma animal tambem pode ser altamente virtuosa, mas nunca superior».
Burgueses, maltezes e outros macambúzios fregueses andavam hoje por aqui à cata dele. Pregado às paredes, enfim morto, Amadeu, o destinatário do «K4, O Quadrado Azul», «o substantivo ímpar 1» de José de Almada Negreiros ali estava, enfim, ao seu dispôr, não fora a desorganização que impedia o assalto geral.

13.11.06

A cadeia de união

Regressei, apressado, porque sabia que ia chegar atrasado.. Mas ele esperava-me. Há uma semana disse-lhe que ali estaria, na Boa-Hora, segunda-feira, todo o dia. Anotara e não se esquecera, nem do dia nem do que me prometera: alguns livros do falecido advogado Luiz Pedro Moitinho de Almeida, a cuja memória dedica desvelo fraternal. Eu acredito no destino que nos tece a cadeia da união que nos enlaça. Hoje à noite, já exaurido, peguei num deles. É uma conferência proferida em 3 de Abril de 1954, precisamente em Setúbal. Moitinho de Almeida que eu vi, vivo, pela última vez, a advogar, também no Tribunal em Setúbal, conheceu Fernando Pessoa, empregado de um escritório de seu pai. A conferência dedicou-a à biografia do poeta. É um texto eivado de carinho. Remata-a uma carta de Pessoa sobre uma tentativa do então jovem Moitinho editar uns versos em francês. O autor da «Tabacaria» sugeria que os suprimisse: «tirando o tirado o seu livro ficará interessante», disse. Pensei nisso: «tirando o tirado», sobrava-me a alegria de viver, o remanescente que ainda vale a pena.

8.11.06

A exclusão do mais ninguém

Há na estilística do português um uso indeterminado do pronome possessivo. Mas o mais ambíguo ainda é o artigo definido, usado para individualizar o objecto. É o falar dos que dizem «o meu amanhã», como se lhes pertenecesse e o soubessem como vai ser. Língua variada, tudo se complica quando o pronome possessivo não traduz posse, mas sim uma simulacro de adjectivo, a que o artigo definido dá o toque de intimidade. É como na frase «aquela tua maneira de mo dizeres». O «tua» nada tem a ver com o que te pertence, o que possuis, mas com aquilo que em ninguém mais eu encontro. Aquela tua maneira de seres tu.