27.2.06

O nítido nulo

Através da História conhecemos todo o tempo que os outros nossos antecedentes já viveram, através da Geografia, conhecemos mais mundo do que eles conheceram. A única dúvida é não sabermos quando começou o tempo nem onde acaba o mundo. Dividindo infinito por infinito o resultado é zero. Ou seja, comparando-nos com os nossos antecedentes, estamos pior, ao nível do nulo, nitidamente.

26.2.06

A tautologia e o cardíaco

Bertrand Russel disse um dia que as matemáticas mais não são do que uma vasta tautologia, já que dizer três mais quatro é, afinal, uma outra forma de dizer sete. É por isso que a gramática poética é o fundamento do único conhecimento e da única linguagem enriquecedoras: não por se aprender com a cabeça, mas sim porque se apreende com o coração.

Os blogs de JAB!

Dia de arrumações, criei um blog em que, dizendo de quem se trata, deixo, de modo arrumado, a lista dos blogs que criei e o modo fácil de saber em que dia os actualizei. A partir dali linkam-se todos. Não é que eu tenha muitos leitores, mas acho que lhes devo ao menos o respeito de me organizar. O blog tem o meu nome e encontra-se clicando aqui!.

23.2.06

Por causa que não na sei

Sabem os que sabem que a «Menina e Moça» do Bernardim Ribeiro é um livro carregado de sentidos ocultos e que se presta a hermenêuticas esotéricas. E sabem muitos, sobretudo os que como eu aprendiam Literatura no liceu com gosto, ou à força de chapadas, ou num misto de tudo, que ele começa com «Menina e Moça me levaram de casa de meu pai para longes terras». Agora o que nem todos sabem é o resto: «Qual fosse então a causa daquela minha levada - era pequena - não na soube. Agora não lhe ponho outra, senão que já então parece havia de ser o que depois fui». Haverá melhor forma ou outro meio de, numa frase só, dizer de todo o fatal sentimento deste povo predestinado e do seu fado ignorante? Talvez haja e vem no livro, ainda no seu prefácio: «O livro há-se ser o que vai escrito nele. Das tristezas não se pode contar nada ordenadamente, porque desordenadamente acontecem elas». Eis-nos pois, em desordem, pela vida levados, por causa que não na sabemos, com uma tristeza que nem podemos contar.

16.2.06

A charanga

Agora vai ser até rebentarem com o Agostinho da Silva. Quando era vivo quase metade ignorava-o, a maioria do resto tomava-o como um palhaço, uma minoria compreendia-o. É para isto que servem as efemérides, para matar os mortos, ressuscitando-os primeiro. Houve um livro que ele escreveu em 1981 que se chamava «Fantasia Portuguesa para Orquestra de História e de Futuro». A ideia de orquestra pode induzir em erro. Em matéria de História e de Futuro, somos mais um realejo. Dá-se à manivela e já se sabe o que lá vem. Por isso é melhor deixarem passar a festa das comemorações. Quando retirarem os mirones e os gaiteiros, talvez se possa, enfim, tratar o assunto com respeitabilidade. Dele disse o Ruben A. esta coisa lindíssima, que consegui encontrar na página 101 do segundo volume do seu livro de memórias «O Mundo à minha procura»: «Ensinava-nos a não perder tempo, a ganhar tempo, a completar iniciativas que se discutiam». Um homem destes faz falta na vida de um país. Hoje, no burlesco comemorativo do espectáculo social em que vivemos, de barbicha ao vento e gato ao colo, é apenas uma forma de passar o tempo.

12.2.06

A angústia do amor

Adolfo Casais Monteiro traduziu para português «O desespero humano» de Sören Kirkegaard. Dedicou o trabalho a Leonardo Coimbra. Encontrei agora o livro, tirado em 1936 pela Livraria Tavares Martins, num monte de velharias amarelecidas, a cinco euros cada. Dentro, guardada por algum seu leitor, a cinta vermelha que guarneceria a obra, resumindo-a como «o desespero das almas que não querem abandonar-se à misericórdia e ao perdão de Deus». Não vou ter tempo de o ler tão cedo, mas lembrei-me esta noite de ter lido sobre quem tivera um papel primordial na conversão de Leonardo: o Padre Cruz. Procurei recordar onde o lera e encontrei-o, um breve artigo de Pinharanda Gomes, arquivado nas Actas de um Colóquio que se chamou «As linhas míticas do pensamento português». Estava entre os livros que, aqui por casa, haverão de voltar para a estante, quando houver mais estante. Folheei-o agora, para me deter numa carta que o Padre [Francisco Rodrigues da] Cruz escreveu a Leonardo em Dezembro de 1935 e onde a certo passo cita Santo Afonso: «quem quer o que Deus quer, tem tudo quanto quer». Ora Deus quis que este homem se convertesse, ele não quis outra coisa que esta conversão. Desesperado, tinha então um filho a morrer. A fé surgiu-lhe na angústia do amor.

10.2.06

Rio Mau

Passei de carro, era perto de Vila do Conde. E levava na memória o nome: Rio Mau. Na curva da sinuosa estrada, ainda me passou pela cabeça a ideia de subir, procurar, encontrar. Mas é isto o selvagem urbano com um automóvel nas mãos: segui deliberadamente em frente, regressando a Lisboa. Tinha lido em Dalila Lelo Pereira da Costa, na sua «Corografia Sagrada», onde compilou um artigo que publicara em Agosto de 1989, que era ali que estava o homem engolido pelo monstro, simbolizado na Igreja românica de São Cristóvão de Rio Mau. Erguida pelos Templários, nela está expresso «o valor ritual e existencial do sofrimento, como meio de transmutação». Na dureza granítica da vida, a ideia de que, no irrequieto movimento da viagem pela vida, não mais lá voltarei, persegue-me como se vistos os sinais, tivesse fechado os olhos à luz, o cego que não quer ver.

9.2.06

O menino e a criança

Em Dezembro de 2002 o Museu de Amadeo de Souza-Cardoso, em Amarante, organizou uma exposição dedicada a outro notável filho da terra, Teixeira de Pascoaes. Advogado também - dos que se exilam nas letras - disse sobre ele a irmã, Maria da Glória, num livro, editado em 1971, que eu ainda hei-de encontrar: «foi sempre um homem, nunca foi criança». Pegando exactamente na frase, António Cândido Franco, acrescenta, no catálogo evocativo dos cinquenta anos da sua morte: «o que é também outro modo de dizer que ele foi sempre um menino, nunca um adulto». Parece absurda a conclusão; absurda porém a realidade que a impõe.

7.2.06

A noite e o riso

Li hoje num jornal que vão sair CD's com algumas das «conversas vadias» do Agostinho da Silva. Claro que para muitos, o que vai ficar é o lado burlesco do personagem, as barbas ao vento, o ar de São Francisco de Assis, de quem aliás escreveu uma biografia. Passou-se o mesmo com o Vitorino Nemésio, de quem muitas pessoas só se lembram do «se bem me lembro». É o que dá a televisão. Um único personagem resistiu, o maestro António Melo, que acompanhava ao piano o Museu do Cinema do António Lopes Ribeiro. Entrava mudo e saía calado, com uma única excepção, à despedida, o dizer «boa noute». Tal qual: «noute», que em bom português ainda é mais onomatopaicamente escura do que a noite.

2.2.06

Nos por cá, todos bem

O português naquela sua fusão rural do animal à terra, trai-se quando fala. Acontece com advérbios de lugar que se tornam como complementos pessoais. É o «você ainda há-de vêr o que é um caldo de galinha feito pela minha senhora». É evidentemente que o tem propósito e duplamente propósito no «para do Marão, mandam os que já estão». Mas o «da minha senhora», é outra coisa e um outro mundo, é o sentido e o afecto do « das minhas», esse mundo de intimidade familiar partilhado na mesma cama, sofrido na mesma malga, sepultado no mesmo chão.

A sala 3

Às vezes é só ir ao cinema ver um filme sobre o acaso e sair-nos, afinal, um filme sobre a necessidade: a útil necessidade de manter uma conveniência, a sensual necessidade de entreter um devaneio, a cruel necessidade de liquidar uma inconveniência. Depois é só o remorso da impunidade, o ridículo da justiça, a sordidez do mundo a oferecer um culpado. Às vezes é só ir ao cinema, numa noite de acaso, por necessidade de companhia.